29 de Junho de 2022
- 2º Grau
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Detalhes da Jurisprudência
Órgão Julgador
Publicação
Julgamento
Relator
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Relatório e Voto
RELATÓRIO
O SENHOR MINISTRO MARÇO AURÉLIO BELLIZZE:
Trata-se de habeas corpus impetrado em favor de José Carlos Batelli Corrêa, Luiz Ildefonso Simões Lopes e de Márcio Roberto Resende de Biasi, apontando-se como autoridade coatora o Tribunal Regional Federal da 3ª Região.
Narra a impetração que os pacientes foram denunciados perante o Juízo da 6ª Vara Federal Criminal da Subseção Judiciária de São Paulo, porque teriam, na qualidade de Diretores da BRASCAN S.A. Corretora de Títulos e Valores, intermediado operações na Bolsa de Mercadorias e Futuros - BM&F, por ordem dos administradores da Fundação dos Economiários Federais - FUNCEF, nos pregões dos dias 5, 12, 17 e 25 de novembro e 3 de dezembro, do ano de 1998, causando suposto prejuízo à FUNCEF no valor de R$ 3.449.850,00 (três milhões, quatrocentos e quarenta e nove mil, oitocentos e cinquenta reais).
As condutas ilícitas imputadas aos pacientes foram assim descritas na inicial (fls. 57/80):
Estatuto - Apenso 15, folha 23).
Ademais, o relógio datador não é utilizado nas operações da BM&F, mas sim perante a BOVESPA; outro fato que causa estranheza.
Em mercados como o da BM&F, não se pode admitir que existam estratégias operacionais que resultem sistematicamente em ganhos ou perdas.
Aqui se exacerba tal dever, em virtude de se tratar de uma atividade extremamente especializada, que pressupões o domínio de conhecimentos específicos por parte dos titulares das respectivas competências, razão pela qual poucas escusas são cabíveis nesse contexto peculiar, (fl. 64, DOC. 10)
No Tribunal Regional Federal da 3ª Região, impetrou-se habeas corpus com o fim de se extinguir a ação penal. Foi lá a ordem denegada nos termos desta ementa (fls. 44/55):
No Superior Tribunal de Justiça, alegam os impetrantes, a princípio, que o Ministério Público Federal utilizou-se de apenas 3 (três) meses de aplicações financeiras, escolhidos de forma arbitrária, para embasar a denúncia, tendo desconsiderado a totalidade dos 3 (três) anos de operações do Fundo de Pensão.
Ressaltam que os pacientes não foram indiciados no inquérito administrativo que investigou os mesmos fatos da ação penal, instaurado perante a Comissão de Valores Mobiliários - CVM.
Acrescentam que o mencionado inquérito teria apurado as aplicações da FUNCEF entre os anos de 1995 e 1998, limitando-se a identificar algumas anomalias no comportamento do referido Fundo de Pensão, do qual os pacientes nunca foram administradores. Na oportunidade, não foi atribuída responsabilidade à corretora BRASCAN, que atuou tão somente no último ano, inclusive não tendo sido identificada, nesse período, nenhuma perda para o Fundo dos Economiários Federais.
Argumentam ser inadmissível a inclusão dos diretores da corretora BRASCAN - ora pacientes - no pólo passivo da ação penal, sob pena de ocorrência de responsabilidade penal objetiva.
Explicam que, não obstante a exordial acusatória afirme que a BRASCAN teria executado operações que causaram prejuízo à FUNCEF e lucro às contrapartes - representadas por outras quatro corretoras: SAFIC, BONUS, SÃO PAULO e DC -, a denúncia foi rejeitada pelo Magistrado de primeiro grau em relação a estas, enquanto a BRASCAN, por ter cumprido ordens legais e das quais não poderia dissentir, teve os três diretores denunciados.
Ainda segundo os impetrantes, a inclusão dos pacientes no polo passivo da ação penal deu-se unicamente por exercerem, à época dos fatos, cargos de direção na BRASCAN, tendo em vista que, a todo o momento, a denúncia se refere à pessoa jurídica, e não aos pacientes individualmente.
Quanto à imputação do crime de gestão fraudulenta, descrito no art. 4º da Lei n.º 7.492/1986, destacam que os pacientes não tinham influência sobre a administração da FUNCEF, de forma que não poderiam responder por eventuais atos de gestão fraudulenta perpetrados contra a Instituição.
Sublinham que a BRASCAN e a FUNCEF possuíam como único vínculo a prestação de serviços, que consistia na "intermediação de operações nos mercados disponíveis, a termo, futuro, futuro de índices, de opções, de mercadorias e ativos financeiros a serem realizadas nas Bolsas de Valores e Bolsas de Mercadorias & Futuro do Rio de Janeiro e de São Paulo" (fls. 24/25).
Aduzem que da leitura da exordial acusatória não se enxerga a individualização da conduta de cada um dos pacientes capaz de demonstrar a prática do delito descrito no art. 6º da Lei n.º 7.492/1986, deixando a inicial de esclarecer quais informações teriam sido sonegadas ou prestadas falsamente, além de não apontar quem teria sido induzido em erro.
Asserem que, deixando a peça acusatória de oferecer dados essenciais e de fundamental importância, bem como de demonstrar o liame e ajuste dos fatos concretos aos elementos do tipo penal, torna-se impossível o exercício do contraditório e da ampla defesa, sendo inequívoco o constrangimento ilegal a que submetidos os pacientes.
Relativamente ao art. 7º da Lei de Crimes Contra o Sistema Financeiro Nacional, ponderam que as operações com derivativos intermediadas pela BRASCAN passaram a ser consideradas como valores mobiliários somente após o ano de 2001 com a publicação Lei n.º 10.303/2001, que alterou o art. 2º da Lei n.º 6.385/1976.
Desse modo, entendem abusivo cogitar-se da prática do referido crime, supostamente ocorrido em 1998, envolvendo a emissão, oferecimento ou negociação de títulos mobiliários, que não eram assim considerados à época dos fatos.
Ressaltam - também no que tange ao art. 7º da Lei de Crimes Contra o Sistema Financeiro Nacional - que a denúncia apenas faz menção ao tipo penal violado, não indicando em que incisos teriam incorrido os pacientes, bem como deixa de descrever minimamente as condutas praticadas, detendo-se a fazer referência genérica e vazia aos elementos característicos da conduta típica.
Diante disso, requerem:
a) o trancamento da ação penal, no que concerne ao crime de gestão fraudulenta, quer pela falta de justa causa para o processamento do feito, quer pela manifesta inépcia da denúncia, que não descreve a participação dos pacientes, incluindo-os no pólo passivo apenas por exercerem cargos de direção no conglomerado BRASCAN, à época dos fatos;
b) o trancamento da ação penal, quanto a imputação do art. 6º da Lei n.º 7.492/1986; e
c) o trancamento da ação penal, no que tange à imputação do art. 7º da Lei n.º 7.492/1986, diante da imprestabilidade da denúncia e da ausência de justa causa para o processamento do feito.
O pedido liminar foi indeferido pelo antigo relator, Ministro Napoleão Nunes Maia Filho (fls. 337/339).
Prestadas as informações (fls. 347/358), a douta Subprocuradoria Geral da República, ao manifestar-se, opinou pela denegação da ordem (fls. 366/370).
O pedido de reconsideração da decisão que indeferiu a pretensão liminar foi indeferido (fls. 394/396).
É o relatório.
VOTO
O SENHOR MINISTRO MARÇO AURÉLIO BELLIZZE (RELATOR):
São submetidas ao Poder Judiciário, cada vez mais frequentemente, questões que envolvem os denominados crimes societários, caracterizados como aqueles praticados pelo indivíduo, isolada ou coletivamente, agindo em nome de determinada pessoa jurídica, como seu representante ou mandatário.
No entanto, mormente em expressivas organizações empresariais, torna-se demasiadamente dificultosa a identificação da origem dos atos volitivos que dão ensejo àquela espécie de delito, o que acarreta a inevitável consequência de ser esse tipo de crime fenômeno de difícil individualização.
O operador do direito vê-se, assim, diante de tormentosa situação, vez que deve perseguir a reivindicação social no sentido de reprimir a criminalidade econômica no seio das organizações empresariais, mas, também, deve ter em mente que não pode alijar de tal persecução os preceitos garantidores da responsabilidade penal subjetiva, da ampla defesa, do contraditório e do devido processo legal.
Como cediço, diante do modelo de responsabilidade penal adotado pelo nosso ordenamento jurídico, e, principalmente, em vista dos princípios constitucionais da ampla defesa, do contraditório, do devido processo legal, da presunção de inocência e da dignidade da pessoa humana, assim como dos arts. 8º, item 2, letra b , da Convenção Americana de Direitos Humanos - Pacto de San José da Costa Rica -, e art. 41 do Código de Processo Penal, compete ao Ministério Público pormenorizar, no bojo da competente denúncia, inclusive no âmbito dos denominados crimes societários, os comportamentos que, atribuídos ao agente, subsumem-se aos preceitos legais supostamente violados.
Corroborando esse entendimento, leciona Hugo de Brito Machado:
Na mesma linha, põe-se a conclusão de Aury Lopes:
Desse modo, o membro do Parquet não pode deixar de observar as exigências insculpidas no art. 41 do Código de Processo Penal, sob pena de incorrer em inequívoca ofensa jurídico-constitucional quando da persecução criminal em face daqueles que, supostamente, praticaram delitos societários.
No entanto, consolidou-se, por meio de reiteradas decisões do Supremo Tribunal Federal e do Superior Tribunal de Justiça, a tendência de se atenuar, em se tratando de crimes societários, a necessidade de descrição minuciosa das condutas dos agentes envolvidos, diferindo-se para a instrução do processo a individualização dos fatos atribuídos à sociedade empresarial.
Depreende-se que tais decisões estão alicerçadas, basicamente, sobre dois fundamentos. O primeiro, estritamente firmado em consideração de ordem prática, diz respeito à dificuldade, já apontada alhures, com a qual se defrontam os órgãos de persecução penal em penetrar na estrutura societária, de modo a conhecer as deliberações tomadas no âmbito da vida empresarial. O segundo, leva em consideração o disposto no art. 569 do Código de Processo Penal, que autoriza que as omissões da denúncia ou da queixa sejam supridas a todo tempo, antes da sentença final. Com fulcro no aludido dispositivo, seria possível postergar-se para a fase instrutória do processo criminal a pretensa individualização das responsabilidades dos agentes envolvidos.
Entretanto, o exame das mais recentes decisões do Supremo Tribunal Federal sinaliza uma mudança de entendimento em relação à impossibilidade de denúncia genérica no âmbito dos crimes societários, de modo a repelir os fundamentos abordados acima.
De fato, a impossibilidade de os órgãos de persecução penal conhecerem da intimidade da vida societária anteriormente à instauração do processo não poderia autorizar o oferecimento de denúncia genérica. Em outras palavras, não é possível compensar o déficit investigatório com a violação de garantias fundamentais, notadamente relativas ao devido processo legal, ao contraditório e à ampla defesa.
Em relação ao segundo fundamento, os Tribunais Superiores estavam a conferir interpretação equivocada ao art. 569 do Código de Processo Penal. Em outros termos, as omissões passíveis de serem sanadas, antes da sentença, são aquelas que não dizem respeito a elementos essenciais da acusação. Referem-se, apenas, a falhas que não impedem o exercício do contraditório ou da ampla defesa.
A propósito, confira-se o magistério de Guilherme de Souza Nucci:
Desse modo, não se poderia lançar mão do aludido dispositivo para, quando da instrução processual, especificar condutas e individualizar agentes no âmbito dos crimes societários.
Sem dúvida alguma, a ausência de individualização do comportamento do agente faz emergir, desse ato processual, sério atentado aos princípios constitucionais do devido processo legal, da ampla defesa, do contraditório, da dignidade da pessoa humana, da presunção de inocência, bem como ao art. 41 do Código de Processo Penal.
O Supremo Tribunal Federal, atento a essa evolução hermenêutica, passou a adotar, recentemente, decisões nesse sentido:
A posição mais recente do Supremo Tribunal Federal encontra eco na doutrina pátria. Vicente Greco Filho, corroborando a posição manifestada pelo Pretório Excelso, assevera:
Essa orientação tem, hoje, o beneplácito de ambas as Turmas da Terceira Seção do Superior Tribunal de Justiça.
Nesse sentido:
Traçados esses vetores interpretativos, passo à análise do caso concreto.
Nos autos consta que os pacientes foram denunciados perante o Juízo da Sexta Vara Federal da Subseção Judiciária de São Paulo, porque teriam, na qualidade de Diretores da BRASCAN S.A. Corretora de Títulos e Valores e de representantes da FUNCEF - Fundação dos Economiários Federais - intermediado operações "de risco, indevidas, fraudulentas, que objetivavam lucros para as contrapartes, e que, basicamente, assentavam-se no chamado"passa a ficha", jargão do mercado que significa a troca da operação de uma contraparte pela outra" (fl. 62), causando, com isso, prejuízo ao referido Fundo de Pensão e lucro às contrapartes, representadas por outras quatro corretoras - SAFIC, BONUS, SÃO PAULO e DC.
Narra a exordial que, "contrariando disposição contratual, a BRASCAN realizou propositadamente inúmeras operações de risco (altos investimentos com previsão de retorno ínfimo) as quais causaram prejuízo de R$ 3.449.850,00 à FUNCEF" (fl. 67).
Ainda segundo a peça acusatória, a referida corretora atuou de maneira totalmente irregular na Bolsa de Mercadorias & Futuros - BM&F -, fazendo parte do conjunto de "manobras que encobriram as operações lesivas à FUNCEF" (fls. 68/70):
a) a suspensão das gravações das ordens de serviço, de modo a facilitar as possíveis operações fraudulentas ou temerárias;
b) a utilização de boletos e relógio datador para controle das operações, sendo que, "após a descoberta das fraudes, teria sido constatado que os registros constantes dos boletos referentes as operações realizadas pela BRASCAN não estavam de acordo com o relógio datador" (fl. 69); e
c) ausência de autorização da BRASCAN para atuar no mercado futuro junto à Bolsa de Mercadorias & Futuros - BM&F.
Ao final, os pacientes foram denunciados pela suposta prática das condutas descritas nos arts. 4º, 6º e 7º da Lei n.º 7.492/1986.
Relembremos o que preconiza o art. 4º da Lei n.º 7.492/1986:
Nesse particular, sustentam os impetrantes que terceiros estranhos à administração do estabelecimento financeiro não podem ser acusados do crime previsto no art. 4º da Lei n.º 7.492/1986 - gestão fraudulenta - e que não há, no mais, narração suficiente à conclusão sobre tratar-se de peça acusatória adequada.
Como bem destaca Rodolfo Tigre Maia (Dos Crimes contra o Sistema Financeiro Nacional. Anotações à Lei Federal 7.492/86. São Paulo. Malheiros Editores, 2006), a objetividade jurídica do tipo definido no art. 4º da Lei n.º 7.492/1986 é a "transparência, a lisura, a honradez e a licitude na gestão das instituições financeiras, requisitos indispensáveis à credibilidade e à existência destas e do sistema que conformam".
Segundo Paschoal Mantecca (Crimes contra a Economia Popular e Sua Repressão. São Paulo, Saraiva, p.41), a gestão fraudulenta "caracteriza-se pela ilicitude dos atos praticados pelos responsáveis pela gestão empresarial, exteriorizada por manobras ardilosas e pela prática consciente de fraudes".
Sobre o delito do art. 4º da Lei n.º 7.492/1986, Adel El Tasse (Legislação Criminal Especial, Coordenador Luiz Flávio Gomes e Rogério Sanches Cunha, Sistema Financeiro - Adel El Tasse, São Paulo: Revista dos Tribunais, p. 916/917) leciona que ao administrar ou gerir instituição financeira, o sujeito ativo o faz de forma fraudulenta, ou seja, meio enganoso, com má-fé e intuito de ludibriar. Nota-se que a gestão fraudulenta traz mais que um excesso de risco. O tipo exige um dolo específico, ou seja, uma vontade consciente do agente em praticar ato que dará aparência de legalidade a negócio ou situação jurídica que, em sua natureza, é ilegal.
Há quem sustente, por isso mesmo, que o particular estranho à administração da instituição financeira ou não-enquadrado em um dos incisos do parágrafo único do artigo 1º - a pessoa jurídica que capte ou administre seguros, câmbio, consórcio, capitalização ou qualquer tipo de poupança ou recursos de terceiros e a pessoa natural que exerça quaisquer das atividades referidas no artigo -, não implementa o gerenciamento da instituição, não se podendo, portanto, dizer que veio a fazê-lo fraudulentamente.
Segundo tal corrente de pensamento, a própria Lei n.º 7.492/1986 contém preceito a definir a relação jurídica subjetiva. Segundo o artigo 25, são penalmente responsáveis, nos termos da lei, o controlador e os administradores de instituição financeira, assim considerados os diretores e gerentes. Consoante o 1º, equiparam-se aos administradores de estabelecimento financeiro o interventor, o liquidante ou o síndico.
Essa mesma percepção foi registrada por Roberto Delmanto (Leis Penais Especiais Comentadas, Renovar, Rio de Janeiro, p. 140/141), cujo autorizado magistério assim apreciou a questão:
Nesse sentido, trago ementa que, em caso assemelhado a este, escreveu a Ministra Maria Thereza para o HC n.º 101.381/RJ, de 2011:
O Supremo Tribunal Federal possui idêntico entendimento, destacando-se:
Por oportuno, parece-me cabível, pelo menos em tese, no delito em questão, o concurso de pessoas seja na modalidade coautoria ou participação, pela incidência da norma de extensão pessoal prevista no art.299 doCódigo Penall.
Lembremo-nos que o art. 30 do Código Penal diz que não se comunicam as circunstâncias e as condições de caráter pessoal, salvo quando elementares do crime. A regra, como se percebe, é a da incomunicabilidade, entre os coparticipantes, das circunstâncias, bem como das condições de caráter pessoal, sendo excepcionada quando se tratar de elementares do crime.
Sendo a condição de administrador ou de controlador de instituição financeira elementar do crime de gestão fraudulenta, poderá ser estendida ao coparticipante que, dela tendo conhecimento, responderá pelo mesmo crime cometido pelo possuidor da condição especial exigida no tipo.
Ademais, se nada diz a Lei n.º 7.492/1986 acerca de eventual vedação à ampliação das hipóteses de incidência do tipo, torna-se aplicável o contido no art. 29 do Código Penal, ante, como dito, ausência de proibição expressa na legislação especial, nos moldes do art. 12 do Código Penal - "as regras gerais deste Código aplicam-se aos fatos incriminados por lei especial, se esta não dispuser de modo diverso".
Tanto é assim que, se de um lado inúmeros crimes capitulados na Lei n.º 7.492/1986 exigem condição especial do agente, por versarem sobre condutas omissivas e comissivas na gestão e na administração de instituição financeira - art. 25, caput e 1º; de outro lado, o 2º do mesmo dispositivo acaba por prever expressamente a figura da participação ao instituir o benefício de redução da pena ao partícipe que realizar a confissão espontânea.
Confira-se, a propósito, o que diz o art. 25 da Lei n.º 7.492/1986:
Art. 25. São penalmente responsáveis, nos termos desta lei, o controlador e os administradores de instituição financeira, assim considerados os diretores, gerentes (Vetado).
1º Equiparam-se aos administradores de instituição financeira (Vetado) o interventor, o liquidante ou o síndico.
2º Nos crimes previstos nesta Lei, cometidos em quadrilha ou coautoria, o coautor ou partícipe que através de confissão espontânea revelar à autoridade policial ou judicial toda a trama delituosa terá a sua pena reduzida de um a dois terços.
Dito isso, tenho para mim que muito embora o delito do art. 4º da Lei n.º 7.492/1986, exija qualidade especial do agente - administrador ou gerente -, tal circunstância pessoal, sendo elementar do tipo, é passível de comunicação a terceiros estranhos à sociedade, quando deles conhecida, por força da incidência do art. 30 do Código Penal.
No entanto, a inicial deve vir acompanhada de um mínimo de prova ou de evidências que demonstrem o inequívoco ajuste prévio de vontades entre pelo menos um agente qualificado, na condição de autor, e aquele desprovido do elemento especial (no mesmo sentido: REsp n.º 575.684/SP). Isso aqui não ocorreu.
Como vimos do relatório, a denúncia não imputa aos pacientes a prática da conduta em coautoria ou participação, nos termos assinalados pelo art. 29 do Código Penal. Além disso, o denunciante não indica a conduta perpetrada pelos pacientes no sentido de gerir fraudulentamente instituição financeira.
É cediço que o tipo em questão é dos chamados abertos, é dizer, não existe uma definição típica completa e precisa para que se possa adequar a conduta do agente ao modelo abstrato previsto na lei. Em razão disso, os fatos e conclusões expostos na inicial devem descrever, em respeito ao princípio da ampla defesa e do contraditório, palavra por palavra, as condutas desleais perpetradas com o fim de causar prejuízo ao mercado financeiro. Porém, parece-me insuficiente o que se escreveu com o objetivo de imputar aos pacientes o crime descrito no art. 4º da Lei n.º 7.492/1986.
Não bastasse isso, conforme delineado pelo Procurador da República, foram realizadas operações de nível de risco elevado, nos termos da Resolução do BACEN n.º 2.682, de 21 de novembro de 1999, com o emprego de artifícios, pelos "diretores da FUNCEF e pelo Presidente da CEF que dilapidaram o patrimônio desta fundação, gerando lucros indevidos às contrapartes" (fl. 73).
Observem, portanto, que se algum ilícito penal foi cometido pelos responsáveis legais da FUNCEF, o fato é que tais crimes, na forma em que foram narrados na inicial, não poderiam ser imputados automaticamente aos pacientes - diretores da BRASCAN. Isso porque, conforme se depreende do contrato de prestação de serviços juntado aos autos, a corretora apenas possuía a atribuição de executar ordens emanadas da contratante - FUNCEF.
Nesse particular, transcrevo, por oportuno, a cláusulado mencionado ajuste (fls. 287/288):
Sobre o tópico, destacou a peça acusatória o teor da cláusula 2.3.1 do supracitado contrato. Esta facultava à corretora contratada "se recusar ou abster-se de executar, total ou parcialmente, ordens para a realização de operações no mercado de opções/futuro a favor da FUNCEF, bem como cancelar as ordens pendentes se as ordens a serem executadas representarem riscos excessivos em relação à sua capacidade financeira" (fl. 290).
No entanto, tal cláusula, diversamente do que foi sustentado pelo órgão de acusação, não é suficiente para transferir para os pacientes os deveres de administração e de gestão relativos ao referido Fundo de Pensão.
Ao contrário do que sustenta o Ministério Público, a referida cláusula não estipula dever da BRASCAN Futuros ou da BRASCAN Corretora de Títulos e Valores em relação à FUNCEF, mas sim contempla um direito das primeiras em relação à segunda, de não executarem operações na hipótese de riscos excessivos à sua capacidade financeira (da contratada BRASCAN), verdadeira cláusula de proteção à BRASCAN, em razão da solidariedade entre contratante e contratada, perante as Bolsas, pela liquidação dos contratos nela registrados em seu nome, ajustadas na cláusula 3.1 do contrato de prestação de serviços.
Ora, a referida cláusula 2.3.1 foi estipulada em garantia da contratada BRASCAN, daí que não se pode dela extrair, como pretende o Ministério Público, o fundamento e a evidência principal da autoria e responsabilidade penal dos pacientes - representantes da contratada.
Além disso, para que se pudesse falar em descumprimento da referida cláusula contratual pela contratada, o denominado "risco excessivo" nela mencionado deveria estar comprovado, o que se daria mediante a demonstração de que as operações realizadas guardavam desproporção ou incompatibilidade com a capacidade financeira da FUNCEF, ou mesmo da BRASCAN, explicitando-se que esta última não teria como suportar os investimentos realizados pela primeira. Não foi o que ocorreu na espécie. Não há, na denúncia, sequer uma palavra sobre a assunção de riscos excessivos pela corretora, quando comparado com sua capacidade financeira.
Destarte, o Ministério Público, ao fazer referência à citada cláusula, não se preocupou em revelar a real existência de desconformidade entre as aplicações efetivadas e a capacidade financeira do Fundo de Pensão, ou da corretora, limitando-se a afirmar que tais operações geraram prejuízo. Não ficou delineada, reitero, nenhuma relação de despropósito entre o capital disponibilizado pela FUNCEF e as ditas operações irregulares, o que deixa evidenciado não se poder aferir, da peça acusatória, a ocorrência de ação delituosa com base no suposto descumprimento da previsão contida na cláusula 2.3.1 do contrato.
Prossigo para anotar que a alegação de que os investimentos realizados pela corretora causaram prejuízos ao Fundo de Pensão, ainda que verdadeira, não pode significar a automática responsabilização criminal dos pacientes. Noutros termos, não se pode presumir a responsabilidade criminal dos representantes da corretora BRASCAN ou de qualquer outra, em função de terem executado operações de risco, a mando dos diretores da FUNCEF, principalmente após o afastamento da cláusula 2.3.1, utilizada indevidamente pelo órgão de acusação para estabelecer relação de causalidade que ensejaria a responsabilidade penal dos pacientes pelos fatos constantes da denúncia.
Ora, parece-me ser próprio à dinâmica das operações realizadas no mercado financeiro a assunção, pelos seus participantes, dos riscos de em algumas operações auferirem lucros e, em outras, prejuízos. Desse modo, levando-se em conta que o resultado negativo decorrente dos investimentos realizados no mercado de capitais não integra o tipo penal em exame, entendo que tal indicação, sem outras considerações, constante na denúncia, não basta a configurar a fraude na gestão da instituição financeira, relativamente aos pacientes.
Nesse contexto - ao menos à luz dos dados que instruem a impetração - verifica-se que, na denúncia recebida, partiu-se para a generalização extravagante. Reparem que, além dos administradores do Fundo dos Economiários Federais, foram denunciados cidadãos a ele não integrados, pelo menos sob o ângulo formal, ou seja, os diretores da corretora BRASCAN - ora pacientes.
Tal a situação, não encontro justificativa para o prosseguimento da persecução penal nos termos em que formulada. Noutras palavras: a inicial não foi oferecida de modo a permitir aos pacientes o desembaraçado e mínimo exercício da ampla defesa.
Avanço no raciocínio para dizer que também não há como enxergar a presença, nos autos, à luz da narrativa constante na denúncia, de indícios de participação dos pacientes na prática delituosa a que se refere o art. 6º da Lei n.º 7.492/1986, verbis :
As condutas típicas, na espécie, exprimem o meio pelo qual se dará a sonegação ou a manutenção em erro de sócio, investidor ou repartição pública, se pela conduta de sonegar informação, ou mediante a prestação de declaração falsa.
Para a subsunção perfeita da conduta praticada pelo agente ao modelo abstrato previsto na lei penal deve o Ministério Público "demonstrar a qualidade de controlador ou administrador de instituição financeira do agente, que ele realizou a conduta de sonegar informação verdadeira ou de prestar declaração falsa e que dessas condutas obteve o resultado pretendido que é a indução ou a manutenção em erro de sócio, investidor ou repartição competente, bem como, que havia consciência, vez que o crime somente é punido a título de dolo. Além disso, deverá demonstrar que agiu pessoalmente ou ao menos tinha o domínio do fato sobre a conduta de outrem que o fez por si." (Áureo Natal de Paula. Crimes Contra o Sistema Financeiro Nacional e o Mercado de Capitais, Juruá Editora, 2008, p. 158).
Reparem que o dispositivo em comento tutela, especificamente, a inviolabilidade e a credibilidade do mercado de capitais, protegendo o Sistema Financeiro Nacional da disseminação de informações fraudulentas potencialmente lesivas a sua estabilidade.
Contudo, os fatos e conclusões apontados na inicial não descrevem de que maneira a conduta de cada um dos pacientes poderia se enquadrar na supracitada previsão típica. Pergunto: em que consistiu a informação sonegada ou prestada falsamente? Quem teria sido induzido em erro: sócio, investidor ou repartição pública competente? A meu ver, a conduta delituosa em apuração não guarda nenhuma identificação com o tipo penal. É bem pouco o que se escreveu com o objetivo de imputar aos pacientes o crime do art. 6º da Lei n.º 7.492/1986.
Por outro lado, o delito em estudo também é classificado pela doutrina como crime próprio, ou seja, o tipo penal exige qualidade ou condição especial dos sujeitos ativo e passivo. Impende rememorar, neste ponto, o magistério de Guilherme de Souza Nucci (Leis Penais e Processuais Penais Comentadas. Revista dos Tribunais, 2010, p. 1.149):
Como vimos linhas acima, os pacientes não eram administradores ou gestores do Fundo de Pensão objeto da denúncia, nem descreveu a peça inicial conduta deles que pudesse configurar a autoria ou participação no delito. Dessa forma, não me parece haver adequação perfeita entre a conduta dos corretores da BRASCAN e o tipo penal incriminador do art. 6º da Lei dos Crimes Contra o Sistema Financeiro Nacional, nos termos em que fixada a imputação.
Nesse sentido:
O art.7ºº da Lei n.º7.4922/1986, por sua vez, dispõe:
Tenho sustentado em meus votos que o habeas corpus é antídoto de prescrição restrita, que se presta a reparar constrangimento ilegal, evidente, incontroverso, indisfarçável, que se mostra de plano ao julgador. Não se destina à correção de controvérsias ou de situações que, embora existentes, demandam para sua identificação, aprofundado exame de fatos e provas.
Ocorre que os fatos relatados na denúncia teriam ocorrido no ano de 1998, sendo certo que as operações com derivativos intermediadas pela BRASCAN passaram a ser consideradas como valores mobiliários somente após o ano de 2001, com a vigência da Lei n.º 10.303/2001, que alterou a Lei n.º 6.835/1976, incluindo em seu art. 2º, que trata dos valores mobiliários a ela sujeitos, os incisos VII (contratos futuros, de opções e outros derivativos, cujos ativos subjacentes sejam valores mobiliários) e VIII (outros contratos derivativos, independentemente dos ativos subjacentes).
De toda sorte, porém, não vejo de que maneira as condutas narradas pelo órgão ministerial poderiam subsumir-se ao tipo penal em comento. Não há na inicial acusatória descrição de nenhuma ação ou omissão que tenha dado causa ou contribuído para o evento criminoso, sequer explicitando a denúncia qual dos três incisos do tipo penal do art. 7º teria sido violado com a suposta conduta dos pacientes.
Como vimos do relatório, o motivo da denúncia teria sido a atuação supostamente irregular da corretora BRASCAN na Bolsa de Mercadorias e Futuros. No ponto, indicou o Ministério Público Federal as seguintes "manobras" praticadas pela referida pessoa jurídica:
a) suspender as gravações das ordens de serviço, de modo a facilitar possíveis operações temerárias;
b) utilizar boletos e relógio datador para o controle das operações em vez de meio eletrônico, sendo que, "após a descoberta das fraudes, teria sido constatado que os registros constantes nos boletos referentes às operações realizadas pela BRASCAN não estavam de acordo com o relógio datador"; e
c) ausência de autorização para atuar no mercado futuro junto a BM&F.
A princípio, ressalto que, de acordo com relatório apresentado pela Comissão de Valores Mobiliários - CVM -, as formalidades descritas acima pelo denunciante foram flexibilizadas pela Bolsa de Mercadorias e Futuros - BM&F. Desse modo, perde força o referido argumento da denúncia, pois os atos conceituados pelo Ministério Público como manobras praticadas com o fim de causar prejuízo ao Fundo de Pensão, na realidade, não passavam de meras irregularidades incapazes de mascarar investimentos em tese fraudulentos.
Colho do mencionado relatório estes tópicos (fl. 178):
Além disso, os precedentes atos descritos na inicial, além de não serem individualizados, não se explicitando qual dos pacientes teria sido responsável por seu cometimento, não se amoldam a nenhum dos incisos do referido artigo, não se aduzindo, em momento algum, que os pacientes teriam dado azo à emissão, oferecimento ou negociação de títulos mobiliários.
Reparem que se de um lado a inicial imputa aos diretores da BRASCAN o crime descrito no art. 7º da Lei n.º 7.492/1986, de outro, não traz nenhum elemento por meio do qual se permita a conclusão pela existência das características essenciais do delito; aliás, não há, na denúncia, sequer de forma indireta, descrição de qual ou de quais incisos teriam sido supostamente violados pelos pacientes. A única referência que a inicial faz ao delito está inserida no contexto fático do modo de agir da referida pessoa jurídica perante a Bolsa de Mercadorias e Futuros - BM&F.
Sabemos que a denúncia, muito embora possa, em certas situações, ser resumida, não pode, porém, cair no vazio, primar por omissão ou imprecisão. No caso, a conclusão a que chego é a de me encontrar diante de denúncia vaga e imprecisa.
Não bastasse tudo quanto já foi dito, quedo-me apenas a mais uma ponderação. É que consta da denúncia afirmação no sentido de que uma das condutas ilícitas praticadas pelos pacientes, na qualidade de diretores da BRASCAN, consistiria na atuação, sem autorização, no mercado futuro junto à Bolsa de Mercados e Futuros, alegação essa, inclusive, segundo a exordial, que teria sido confirmada pelo próprio acusado José Carlos Batelli Corrêa.
Todavia, ainda que se admitisse como verdadeiro esse dado constante da peça acusatória, tal fato, por si só, também não se mostraria suficiente à responsabilização dos acusados, da forma em que apresentada, pois não se subsume em nenhuma das condutas típicas aventadas, conforme já exaustivamente demonstrado alhures.
No ponto, lembremo-nos que a BRASCAN CORRETORA DE TÍTULOS E VALORES e a BRASCAN FUTUROS são empresas distintas integrantes do conglomerado BRASCAN. A denúncia, entretanto, confunde as duas pessoas jurídicas. Sendo mais preciso: a denúncia imputa a conduta supostamente criminosa, genericamente, à BRASCAN, sem esclarecer qual delas, ou qual dos pacientes atuou em nome e representação de cada uma das corretoras.
A empresa que intermediou as operações descritas na inicial perante a Bolsa de Mercados e Futuros foi a BRASCAN FUTUROS LTDA., na forma do contrato de intermediação de operações na Bolsa de Mercados e Futuros - BM&F (fls. 299/300).
Destaco que a BRASCAN FUTUROS estava habilitada para atuar em todos os mercados da Bolsa de Mercados e Futuros - BM&F, conforme item 2.2.1 do Relatório de Análise n.º 4/99, da Comissão de Valores Mobiliários (fls. 223/224).
Observem que o paciente José Carlos Batelli Corrêa, exercia, à época dos fatos, atividade completamente estranha às operações descritas na denúncia, sendo diretor da BRASCAN CORRETORA DE TÍTULOS E VALORES, responsável somente pelas operações realizadas junto à Bolsa de Valores, dentre as quais não se incluem as implementadas na BM&F. Não há nos autos provas ou evidências de que o acusado detivesse poder de mando, ou tivesse exercido qualquer atividade perante a corretora BRASCAN FUTUROS LTDA., situação que afasta, por completo, a justa causa para a ação penal em relação ao mencionado paciente.
Saliento que o paciente José Carlos Batelli Corrêa somente foi denunciado porque, na condição de diretor, assinou o contrato com a FUNCEF em 1996, sendo que as operações mencionadas na denúncia ocorreram em 1998. Ora, restando incontroverso que todas as operações da FUNCEF na BM&F foram realizadas pela BRANSCAN FUTUROS, jamais a responsabilidade penal poderia alcançá-lo apenas em razão de ter celebrado contrato de prestação de serviços, dois anos antes dos fatos constantes da denúncia, não existindo nenhuma demonstração de ter ele envolvimento direto ou indireto nas operações questionadas na inicial.
Portanto, a menos que se prestigie a responsabilidade penal objetiva, a ação penal, pelos fatos nela veiculados, ainda que fossem verdadeiros, não poderia atingir o referido paciente.
Já me encaminhando para o desfecho do voto, averbo que, de fato, a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal tem reafirmado a validade de denúncias que, a despeito de resumidas na descrição dos fatos, se baseiam em relatórios formulados por empresas de auditoria ou pelas autoridades administrativas responsáveis pela fiscalização da pessoa jurídica objeto da inicial. Entende-se que a referência ao documento elaborado pela autoridade administrativa "serve à tentativa de demonstração, em si, dos fatos imputados e que têm narração em sede única, ou seja, a revelada pela denúncia" (HC n.º 77.146, Relator o Ministro Março Aurélio, DJ de 4/9/1998).
Mas isso não significa que a peça acusatória, ao confiar a delimitação aprofundada dos fatos e provas ao conteúdo do relatório administrativo, esteja dispensada dos requisitos mínimos de validade. A inicial somente poderá ser considerada apta se, diretamente ou por meio de remissão ao documento elaborado pela autoridade administrativa, contiver a exposição clara e precisa do fato criminoso, com todas as suas circunstâncias. Isso aqui não ocorreu.
Na minha visão, não há nas peças e relatórios transcritos na exordial elementos seguros e precisos da prática dos crimes contra o Sistema Financeiro Nacional imputados aos pacientes. Aliás, a leitura do relatório da entidade fiscalizadora do sistema financeiro, a Comissão de Valores Mobiliários, não revela o indiciamento dos pacientes e nem das sociedades a que pertenciam, pelos fatos objeto da denúncia, mas apenas o indiciamento da própria BM&F e de um dos seus diretores.
Ainda que indagássemos acerca da configuração dessas ou de outras figuras delitivas, os fatos narrados ou imputados aos pacientes necessitariam, inegavelmente, de uma sistematização minimamente plausível e razoável quanto aos elementos básicos que devem constar de uma denúncia adequada a ensejar a legítima persecutio criminis . É dizer: a persecução penal não pode ser legitimamente instaurada sem o atendimento mínimo dos direitos e garantias constitucionais vigentes no Estado Democrático de Direito.
Não desconheço que, nos termos da jurisprudência desta Corte, a extinção da ação penal por falta de justa causa ou por inépcia formal da denúncia situa-se no campo da excepcionalidade. Portanto, é preciso que haja dado incontroverso sobre a impossibilidade de enquadramento de certa conduta no tipo penal evocado pelo Ministério Público. Além disso, parece-me que a liquidez dos fatos constitui requisito inafastável na apreciação de tais temas, pois o habeas corpus não se destina à correção de equívocos ou controvérsias que, embora existentes, demandam, para a sua identificação e correção, o exame de fatos e provas.
Diante dessas considerações, repito - porque já constante dos fundamentos deste voto - que foram apenas quatro os elementos apontados pelo denunciante a fim de imputar aos pacientes as condutas descritas nos arts. 4º, 6º e 7º da Lei n.º 7.492/1986, quais sejam:
1. Assinatura do contrato de prestação de serviços por José Carlos Batelli;
2. Descumprimento do Regulamento de Operações da BM&F - posteriormente flexibilizado, nos termos do relatório apresentado pela Comissão de Valores Mobiliários;
3. O teor da cláusula 2.3.1 do contrato de prestação de serviços firmado entre a FUNCEF e a corretora BRASCAN; e
4. Prejuízo causados ao Fundo de Pensão - FUNCEF.
A simples leitura da denúncia, em cotejo com os documentos e fatos nela mencionados, impõe o afastamento das imputações, pois evidente e indisfarçável o constrangimento ilegal a que submetidos os pacientes, sendo o habeas corpus remédio constitucional adequado, tendo em vista sua característica de ação constitucional voltada para a defesa da liberdade.
Indiscutível que os elementos apontados na inicial possam ter revelado irregularidades contratuais ou administrativas, passíveis de responsabilização nas esferas próprias. Não se descarta, por óbvio, sequer a possibilidade da prática dos crimes imputados ou de outras figuras penais pelos pacientes ou terceiros. No entanto, tais documentos e fatos, no máximo meros indícios, com a narrativa genérica, imprecisa e vaga que lhes deu a denúncia, e desacompanhada de elementos mínimos aptos a atraírem a incidência dos tipos penais, não se mostram suficientes a justificar a propositura ou a continuação da ação penal instaurada contra os pacientes, que já se arrasta por mais de seis anos, o que não significa que outra não possa vir a ser proposta com adequados fundamentos e elementos mínimos de prova.
De tudo quanto exposto, concedo a ordem para, de um lado, extinguir, por falta de justa causa, a Ação Penal n.º 2000.61.81.004245-0 em relação ao paciente José Carlos Batelli Corrêa e, de outro, pronunciar a deficiência formal da denúncia e determinar o trancamento da Ação Penal n.º 2000.61.81.004245-0 relativamente à Luiz Idelfonso Simões Lopes e Márcio Ribeiro Resende de Biase, ressalvado, porém, o oferecimento de outra denúncia, desde que preenchidas as exigências legais mínimas.
É como voto.
Documento: 20858684 | RELATÓRIO E VOTO |