RELATÓRIO
MINISTRO HUMBERTO GOMES DE BARROS: A recorrente pede Mandado de Segurança contra a interrupção do fornecimento de energia elétrica pela impetrada, após notificação prévia por falta de pagamento, visto que tal serviço é público, devendo obedecer ao princípio da continuidade, conforme dispõe os artigos 22 e 42 do Código de Defesa do Consumidor. A liminar foi deferida. O Juízo "a quo" denegou a segurança, cassando a liminar concedida.
O Tribunal "a quo" negou provimento ao recurso, ao fundamento de que não existe qualquer direito líquido e certo a ser amparado por meio de Mandado de Segurança, ou motivos que justifiquem a persistência do débito e a continuidade do serviço. Entenderam que não há previsão legal que obrigue o fornecimento gratuito de energia elétrica e não há arbitragem na suspensão do fornecimento até a regularização dos pagamentos.
Adveio recurso especial (alíneas a e c) queixando-se de ofensa aos artigos 22 e 42 da Lei 8.042/90 (CDC), bem como apontando dissídio jurisprudencial.
ADMINISTRATIVO - ENERGIA ELÉTRICA - CORTE FALTA DE PAGAMENTO.
- É lícito à concessionária interromper o fornecimento de energia elétrica, se, após aviso prévio, o consumidor de energia elétrica permanecer inadimplente no pagamento da respectiva conta (L. 8.987/95, Art. 6º, 3º, II).
VOTO
MINISTRO HUMBERTO GOMES DE BARROS (RELATOR): A questão debatida neste recurso resume-se na indagação:
- É lícito ao vendedor de energia elétrica cortar o fornecimento deste bem, quando o consumidor deixa de pagar o respectivo preço?
A Jurisprudência da Primeira Secção está dividida. Enquanto a Primeira Turma proclama a impossibilidade, a Segunda afirma ser possível o corte.
A Quarta Turma, também aprecia o tema, proclamando a licitude do corte.
Para melhor avaliação da Corte, reproduzo, à guisa de exemplo acórdão de cada um desses colegiados:
1. É condenável o ato praticado pelo usuário que desvia energia elétrica, sujeitando-se até a responder penalmente.
2. Essa violação, contudo, não resulta em reconhecer como legítimo ato administrativo praticado pela empresa concessionária fornecedora de energia e consistente na interrupção do fornecimento da mesma.
3. A energia é, na atualidade, um bem essencial à população, constituindo-se serviço público indispensável subordinado ao princípio da continuidade de sua prestação, pelo que se torna impossível a sua interrupção.
4. Os arts. 22 e 42, do Código de Defesa do Consumidor, aplicam-se às empresas concessionárias de serviço público.
5. O corte de energia, como forma de compelir o usuário ao pagamento de tarifa ou multa, extrapola os limites da legalidade.
6. Não há de se prestigiar atuação da Justiça privada no Brasil, especialmente, quando exercida por credor econômica e financeiramente mais forte, em largas proporções, do que o devedor. Afronta, se assim fosse admitido, aos princípios constitucionais da inocência presumida e da ampla defesa.
7. O direito do cidadão de se utilizar dos serviços públicos essenciais para a sua vida em sociedade deve ser interpretado com vistas a beneficiar a quem deles se utiliza.
- Há expressa previsão normativa no sentido da possibilidade de suspensão do fornecimento de energia elétrica ao usuário que deixa de efetuar a contraprestação ajustada, mesmo quando se tratar de consumidor que preste serviço público (art. 6º, 3º, da Lei n. 8.987/95 e art. 17 da Lei n. 9.427/96).
Neste última linha, a Terceira Turma (REsp. 285.262:
I. Pode a empresa concessionária suspender o fornecimento de energia elétrica em face de atraso no pagamento de conta pelo usuário, porém deve fazê-lo mediante prévia comunicação do corte, nos termos do art. 6º, parágrafo 3º, da Lei n. 8.987/93, sujeitando-se, outrossim, pela irregular descontinuidade de serviço público essencial, a ressarcir o prejudicado pelos danos materiais e morais daí advindos.
Contribuí para a jurisprudência da Primeira Turma. No entanto, após meditar, com olhos nos dispositivo da Lei 8.987/95, percebi que o corte, por efeito de mora, além de não maltratar o Código do Consumidor, é permitido. Cheguei a essa conclusão, após receber um pedido de medida cautelar, formulado por um pequeno município do Estado do Rio de Janeiro, no propósito de proibir a empresa de eletricidade local, de cortar o fornecimento de energia elétrica a qualquer residência localizada no território do Município, cujo morador deixasse de pagar a conta de luz. A teor da petição, o corte, em tal circunstância, traduziria atentado à dignidade humana.
Neguei a liminar, com o argumento de que a proibição acarretaria aquilo a que se denomina efeito dominó. Com efeito, ao saber que o vizinho está recebendo energia de graça, o cidadão tenderá a trazer para si o tentador benefício. Em pouco tempo, ninguém mais honrará a conta de luz.
Ora, se ninguém paga pelo fornecimento, a empresa distribuidora de energia não terá renda. Em não tendo renda, a distribuidora não poderá adquirir os insumos necessários à execução dos serviços concedidos e, finalmente, entrará em insolvência.
Falida, a concessionária, interromperia o fornecimento a todo o município, deixando às escuras, até a iluminação pública.
A tese da impossibilidade do corte assenta-se nos Artigos 22 e 42 da Lei 8.078/90 (Código do Consumidor), a dizerem, respectivamente: Art. 22 - Os órgãos públicos, por si ou por suas empresas, concessionárias, permissionárias ou sob qualquer outra forma de empreendimento, são obrigados a fornecer serviços adequados, eficientes, seguros e, quanto aos essenciais, contínuos.
Art. 42 Na cobrança de débitos, o consumidor inadimplente não será exposto a ridículo, nem submetido a qualquer tipo de constrangimento ou ameaça. Parágrafo único O consumidor cobrado em quantia indevida tem direito a repetição do indébito, por valor igual ao dobro do que pagou em excesso, acrescido de correção monetária e juros legais, salvo hipótese de engano justificável.
É necessário, entretanto, observar que o fornecimento de energia elétrica se faz mediante concessão, regida pela Lei 8.987/95, cujo art 6º diz: Toda concessão ou permissão pressupõe a prestação de serviço adequado ao pleno atendimento dos usuários, conforme estabelecido nesta Lei, nas normas pertinentes e no respectivo contrato.
1º Serviço adequado é o que satisfaz as condições de regularidade, continuidade, eficiência, segurança, atualidade, generalidade, cortesia na sua prestação e modicidade das tarifas.
2º A atualidade compreende a modernidade das técnicas, do equipamento e das instalações e a sua conservação, bem como a melhoria e expansão do serviço.
3º Não se caracteriza como descontinuidade do serviço a sua interrupção em situação de emergência ou após prévio aviso, quando:
I - motivada por razões de ordem técnica ou de segurança das instalações; e,
II - por inadimplemento do usuário, considerado o interesse da coletividade.
Como se percebe, o 3º permite, expressamente, a interrupção do fornecimento, quando o usuário deixa de cumprir sua obrigação de pagar.
O dispositivo é sábio. Com efeito, a distribuição de energia é feita, em grande maioria, por empresas privadas que não estão obrigadas a fazer benemerência em favor de pessoas desempregadas.
A circunstância de elas prestarem serviços de primeira necessidade não as obriga ao fornecimento gratuito. Ninguém se anima em afirmar que as grandes redes de supermercados e as farmácias fornecedoras de alimentos e medicamentos devem entregar gratuitamente, suas mercadorias aos desempregados.
O corte é doloroso, mas não acarreta vexame. Vergonha maior é o desemprego e a miséria que ele acarreta. Em linha de coerência, deveríamos proibir o patrão de despedir empregados.
O fornecimento gratuito de bens da vida constitui esmola. Negamos empregos a nosso povo e o apascentamos com esmolas. Nenhuma sociedade pode sobreviver, com seus integrantes vivendo de esmolas. A lição ministrada pelo grande poeta Zé Dantas parece-me definitiva:
Seu doutor uma esmola
Para o homem que é são
Ou lhe mata de vergonha
Ou vicia o cidadão.
Nego provimento ao recurso especial, para dizer que é lícito à concessionária interromper o fornecimento de energia elétrica, se, após aviso prévio, o consumidor de energia elétrica mantém inadimplência no pagamento da respectiva conta.
Documento: 797091 | RELATÓRIO E VOTO | |