25 de Junho de 2022
- 2º Grau
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Detalhes da Jurisprudência
Processo
Órgão Julgador
Publicação
Julgamento
Relator
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Relatório e Voto
RECORRENTE | : | BANCO FORD S/A |
ADVOGADO | : ANA PAULA CAPITANI E OUTRO (S) | |
RECORRIDO | : | THAIS DE MELO LEMOS |
ADVOGADO | : | FERNANDO DE MELLO E OUTRO |
RELATÓRIO
O EXMO. SR. MINISTRO LUIS FELIPE SALOMAO (Relator):
1. Thais de Melo Lemos ajuizou ação de usucapião de bem móvel em face de Banco Ford S/A, aduzindo que adquiriu um automóvel Escort L, em dezembro de 1995, de Luis Fernando Gomes Pereira, o qual, por sua vez, adquiriu o veículo mediante alienação fiduciária em garantia prestada em favor do banco réu. Informou a autora que, desde a aquisição do bem, exerce posse tranqüila e de boa-fé, com intenção de dono. Diante da inércia da instituição financeira, pleiteia, então, o domínio do automóvel mediante declaração de prescrição aquisitiva.
Em contestação, o réu alegou, em síntese, a impossibilidade de declaração da usucapião, tendo em vista que sobre o automóvel incide gravame de alienação fiduciária e remanesce, ainda, um débito de aproximadamente R$ em aberto.
O Juízo de Direito da 14ª Vara Cível do foro central da comarca de Porto Alegre/RS julgou procedente o pedido e declarou a aquisição do domínio por parte da autora, mediante usucapião, determinando a expedição de registro desembaraçado de qualquer gravame. (fls. 129/130)
O Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul, mantendo a sentença de procedência, negou provimento à apelação manejada pelo banco réu, nos termos da ementa seguinte:
Sobreveio, assim, recurso especial com fundamento na alínea c do permissivo constitucional, no qual se pretende a prevalência de tese esposada em acórdão colacionado como paradigma, segundo a qual o gravame do bem com alienação fiduciária dada em garantia impede a aquisição de domínio por usucapião, inclusive em relação a terceira pessoa que adquiriu o bem do devedor original.
O especial foi admitido na origem (fls. 185/186, e-STJ), ascendendo os autos a esta e. Corte Superior.
É o relatório.
RELATOR | : | MINISTRO LUIS FELIPE SALOMAO |
RECORRENTE | : | BANCO FORD S/A |
ADVOGADO | : ANA PAULA CAPITANI E OUTRO (S) | |
RECORRIDO | : | THAIS DE MELO LEMOS |
ADVOGADO | : | FERNANDO DE MELLO E OUTRO |
EMENTA
DIREITO CIVIL. USUCAPIAO. BEM MÓVEL. ALIENAÇAO FIDUCIÁRIA. AQUISIÇAO DA POSSE POR TERCEIRO SEM CONSENTIMENTO DO CREDOR. IMPOSSIBILIDADE. ATO DE CLANDESTINIDADE QUE NAO INDUZ POSSE. INTELIGÊNCIA DO ART. 1.208 DO CC DE 2002 . RECURSO ESPECIAL CONHECIDO E PROVIDO.
1. A transferência a terceiro de veículo gravado como propriedade fiduciária, à revelia do proprietário (credor), constitui ato de clandestinidade, incapaz de induzir posse (art. 1.208 do Código Civil de 2002), sendo por isso mesmo impossível a aquisição do bem por usucapião.
2. De fato, em contratos com alienação fiduciária em garantia, sendo o desdobramento da posse e a possibilidade de busca e apreensão do bem inerentes ao próprio contrato, conclui-se que a transferência da posse direta a terceiros porque modifica a essência do contrato, bem como a garantia do credor fiduciário deve ser precedida de autorização.
3. Recurso especial conhecido e provido.
VOTO
O EXMO. SR. MINISTRO LUIS FELIPE SALOMAO (Relator):
2. O recurso especial é fundado em dissídio jurisprudencial, cuja comprovação foi adequadamente realizada pelo recorrente, que coteja analiticamente acórdãos de tribunais diversos, identificando textualmente as bases fáticas que os assemelham, bem como as consequências jurídicas dissonantes. Com efeito, o recurso não encontra óbice no art. 255 do RIST, razão por que passo à análise do seu mérito.
3. O precedente é novo no âmbito desta Quarta Turma.
É saber se o automóvel que conta com gravame de alienação fiduciária em garantia, transferido a terceiro, pode ser adquirido por usucapião .
O Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul manteve a procedência do pedido, e assim o fez pelos fundamentos que ora transcrevo:
Art. 1261 - Se a posse de coisa móvel se prolongar por cinco anos produzirá usucapião, independentemente de justo título e boa-fé.
Apelação cível. Ação de usucapião. Bem móvel. Ausência de interesse de agir afastada. Julgamento de plano, art. 515, 3º, do CPC. Posse do veículo há mais de cinco anos. Desnecessidade de justo título e boa-fé. Propriedade reconhecida. Apelo provido. (Apelação Cível Nº 70004277349, Décima Terceira Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Breno Pereira da Costa Vasconcellos, Julgado em 19/01/2006)
APELAÇAO CÍVEL. POSSE E PROPRIEDADE (BENS MÓVEIS). AÇAO DE USUCAPIAO EXTRAORDINÁRIO. AUTOMÓVEL. Impõe-se o juízo de procedência da ação de usucapião extraordinário, uma vez comprovada a posse mansa e pacífica do veículo por lapso temporal superior a cinco anos (CC/1916, artigo 619), vez que dispensada, na hipótese, a ocorrência de justo título e boa fé, restando sem amparo probatório as teses lançadas pela instituição financeira no sentido de qualificar como clandestina a posse exercida pelo autor. APELAÇAO PROVIDA. (Apelação Cível Nº 70011489606, Décima Quarta Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Rogerio Gesta Leal, Julgado em 19/05/2005)
3.1. Objetivando estabelecer as corretas premissas para a solução da controvérsia, não é ocioso assinalar que, em contratos com alienação fiduciária em garantia, ocorre o fenômeno do desdobramento da posse, tornando-se o devedor o possuidor direito da coisa, e o credor titular da propriedade fiduciária resolúvel -, possuidor indireto. Somente após o pagamento da dívida, a propriedade fiduciária do credor se extingue em favor do devedor, bem como sua posse indireta, tornando-se o devedor proprietário e possuidor pleno.
Aliás, fidúcia pressupõe confiança, segurança. O adquirente da coisa gravada com alienação fiduciária exerce a posse consentida pelo proprietário, em confiança de que pagará as prestações ou restituirá o bem.
3.2. Com efeito, no caso ora examinado, perquire-se se é consentânea com essas características da propriedade fiduciária a possibilidade de usucapião, por terceiro adquirente da posse da coisa dada em garantia, com fundamento no art. 1.261 do Código Civil de 2002 (correspondente ao art. 619 CC, 1916), que está assim redigido:
Se a posse da coisa móvel se prolongar por cinco anos, produzirá usucapião, independentemente de título ou boa-fé.
Nesse passo , muito embora o mencionado artigo não exija título nem boa-fé, não é possível o usucapião reconhecido em benefício da autora, porquanto não induzem posse os atos de mera permissão ou tolerância assim como não autorizam a sua aquisição os atos violentos, ou clandestinos, senão depois de cessar a violência ou a clandestinidade (art. 1.208 do Código Civil de 2002).
Assim, malgrado o art. 1.200 preceitue ser justa a posse que não for violenta, clandestina ou precária, o art. 1.208 deixa claro não se tratar de meros vícios na posse, mas, verdadeiramente, de obstáculos a sua aquisição, enquanto persistirem estes característicos.
A permissão ou tolerância a que alude o artigo 1.208 diz respeito à chamada posse precária, que é aquela cujo possuidor, geralmente, obriga-se a restituir o bem ao proprietário ao cabo de certo tempo ou cessando determinada situação. É, de fato, um degrau inferior à posse jurídica, devendo tal circunstância ser considerada mera detenção (MONTEIRO, Washington de Barros, Curso de direito civil, v. 3: direito das coisas. 38 ed. São Paulo: Saraiva, 2007, p . 30).
Confira-se, também, a doutrina de Caio Mário da Silva Pereire sobre o chamado fâmulo da posse:
Por outro lado, atos clandestinos são aqueles praticados às ocultas de quem se interessaria pela recuperação do bem. Assim devem ser considerados os atos, com o escopo de posse, praticados à revelia do proprietário do bem, pouco importando se em relação a outrem se aperfeiçoou a publicidade. É que a clandestinidade, assim como a precariedade, são obstáculos relativos à determinada pessoa: oculta-se da pessoa que tem interesse em recuperar a coisa possuída clam , não obstante ostentar-se às escâncaras em relação aos demais (PEREIRA, Caio Mário da Silva. Instituições de direito civil, v. IV, Direitos Reais . Rio de Janeiro: Forense, 2005, p. 28).
3.3. No caso ora examinado, a posse direta do devedor decorre unicamente do contrato entabulado com pacto de alienação fiduciária em garantia, dependendo seu exercício legítimo do adimplemento nos termos do que fora contratado. Assim, tendo sido o bem garante da dívida transferido a terceiro pelo devedor fiduciante, sem consentimento do credor fiduciário, deve a apreensão do bem pelo terceiro ser considerada mero ato clandestino.
De fato, em verdade, no caso dos autos, não se há falar sequer em posse jurídica, porquanto a transferência a terceiro de veículo gravado como propriedade fiduciária, à revelia do proprietário (credor), constitui ato de clandestinidade, incapaz de induzir posse (art. 1.208 do Código Civil de 2002), sendo por isso mesmo impossível a aquisição do bem por usucapião.
3.4. Por outro lado, o Código Civil de 2002 trouxe regra inovadora acerca da possibilidade de cessão, por parte do devedor, do direito eventual sobre o bem dado em garantia.
Confira-se o único do art. 1.365:
O devedor pode, com a anuência do credor, dar seu direito eventual à coisa em pagamento da dívida, após o vencimento desta.
Em realidade, o dispositivo ora transcrito apenas particulariza para a alienação fiduciária a regra geral aplicável à assunção de dívida, segundo a qual é facultado a terceiro assumir a obrigação do devedor, com o consentimento expresso do credor (...) (art. 299).
No caso de contrato com alienação fiduciária em garantia, sendo o desdobramento da posse e a possibilidade de busca e apreensão do bem inerentes ao próprio contrato, conclui-se, por raciocínio lógico-jurídico singelo, que a transferência da posse direta a terceiros porque modifica a essência do contrato, bem como a garantia do credor fiduciário também deve ser precedida de autorização.
4. A situação ora enfrentada aportou também à Terceira Turma, recebendo daquele colegiado a mesma corrigenda:
5. Em realidade, a prosperar a pretensão deduzida nos autos e aqui não se está a cogitar de má-fé no caso concreto -, abrir-se-ia uma porta larga para se engendrar ardis de toda sorte, tudo com o escopo de se furtar o devedor a pagar a dívida antes contraída. Bastaria a utilização de um intermediário para a compra do veículo e a simulação de uma transferência a terceiro com paradeiro até então desconhecido, para se requerer, escoado o prazo legal, o usucapião do bem.
Não se pode malbaratar tão grosseiramente o usucapião, instituto nobre, cujo reconhecimento de sua relevância jurídica remonta a nossos antepassados romanos; instituto que visa, a um só tempo, premiar quem imprimiu função social à propriedade, em detrimento daquele que a detém de forma meramente especulativa. Muito pelo contrário, o credor fiduciário não só empresta função social à propriedade, mas também fomenta o crédito, aquece o mercado e facilita o acesso a bens duráveis com custo reduzido, diante da maior garantia de recuperação do crédito.
4. Diante do exposto, conheço do recurso especial e dou-lhe provimento para julgar improcedente o pedido deduzido na inicial.
Inverto, por via de conseqüência, os ônus da sucumbência fixados na origem.
É como voto.
Documento: 8459693 | RELATÓRIO, EMENTA E VOTO |