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- 2º Grau
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Inteiro Teor
Superior Tribunal de Justiça Revista Eletrônica de Jurisprudência |
RELATOR | : | MINISTRO MOURA RIBEIRO |
R.P⁄ACÓRDÃO | : | MINISTRO RICARDO VILLAS BÔAS CUEVA |
RECORRENTE | : | ANALUIZA HILTZ VILLELA VON LACHMANN |
ADVOGADOS | : | ARMANDO BORGES DE ALMEIDA JUNIOR - RJ104371 |
DANIEL MAIA BERRIEL BARBOSA - RJ187396 | ||
CARLOS ALEXANDRE BORGES DE ALMEIDA - RJ202611 | ||
RECORRIDO | : | PEDRO CARLOS VILLELA |
ADVOGADOS | : | FELIX SOIBELMAN - RJ076117 |
GUSTAVO KLOH - RJ104856 |
RELATOR | : | MINISTRO MOURA RIBEIRO |
RECORRENTE | : | ANALUIZA HILTZ VILLELA VON LACHMANN |
ADVOGADOS | : | ARMANDO BORGES DE ALMEIDA JUNIOR - RJ104371 |
DANIEL MAIA BERRIEL BARBOSA - RJ187396 | ||
CARLOS ALEXANDRE BORGES DE ALMEIDA - RJ202611 | ||
RECORRIDO | : | PEDRO CARLOS VILLELA |
ADVOGADOS | : | FELIX SOIBELMAN - RJ076117 |
GUSTAVO KLOH - RJ104856 |
PEDRO CARLOS VILLELA (PEDRO) ajuizou aos 6⁄7⁄2010 ação de anulação de doação contra ANALUIZA VILLELA e BELKISS NAZARETH NOTARE (ANALUIZA e outra), respectivamente sua sobrinha e sua genitora, alegando que foi doado ilegalmente, na data de 12⁄12⁄1998, pela última para a primeira, a total propriedade de um bem imóvel localizado na Rua Pompeu Loureiro, nº X, apartamento nº Y, no bairro de Copacabana, no Município do Rio de Janeiro - RJ.
Narrou que é filho de BELKISS e, portanto, interessado diretamente na anulação da doação, classificada como inoficiosa, porque foi celebrada em desacordo com a legislação civil, haja vista que o imóvel doado era o único de propriedade da doadora que possuía herdeiros necessários, não tendo ocorrido a indispensável separação da legítima.
PEDRO acrescentou ainda, que somente tomou conhecimento do negócio jurídico no início do ano de 2010, quando um dos seus filhos, Flávio, prestou esclarecimentos e lhe entregou uma escritura pública declaratória na qual BELKISS explicitou a forma arbitrária como foi realizada a doação.
Afirmou, também, a prática de ato de ingratidão pela donatária contra a doadora, o que possibilita a reversão do ato de liberalidade. Acrescentou que o art. 559 do CC⁄02 estabelece o prazo de um ano para pedir a revogação da doação nas hipóteses dos arts. 557 e 558 do mesmo diploma legal, contado da data em que a doadora tomou conhecimento do fato que autorizaria a revogação do negócio jurídico.
Pediu, ao fim, a declaração de nulidade da doação feita por BELKISS para ANALUIZA, com o regresso do bem doado para o patrimônio da doadora, resguardando a legítima do herdeiro necessário.
Aos 5⁄10⁄2010, PEDRO juntou a certidão de óbito da segunda ré, sua genitora, BELKISS, e pediu a exclusão dela do polo passivo da demanda (e-STJ, fl. 33). Segundo a certidão de óbito ela faleceu aos 19⁄6⁄2010 (e-STJ, fl. 34).
ANALUIZA contestou o pedido, tendo sustentado, em síntese, que 1) o direito de ação de PEDRO estava prescrito porque a doação foi efetivada aos 12⁄12⁄1998, ou seja, na égide do CC⁄16, que estabelecia o prazo de vinte anos para as ações pessoais (art. 177); 2) quando o CC⁄02 entrou em vigor, já havia transcorrido mais da metade dos vinte anos do referido prazo prescricional, aplicando-se o disposto no art. 2.028 do CC⁄02 e, como a ação foi ajuizada aos 6⁄7⁄2010, já estava prescrita quando do seu ajuizamento; 3) de acordo com a jurisprudência do STJ, o prazo prescricional para anulação da doação inoficiosa começa a fluir da data do negócio jurídico (12⁄12⁄1998); 4) a Súmula nº 494 do STF dispõe que o prazo para anular venda de ascendente a descendente, sem consentimento dos demais, prescreve em vinte anos, contados da data do ato, revogada a Súmula nº 152; 5) tanto a escritura da doação (12⁄12⁄1998) quanto o seu registro (25⁄1⁄1999) ocorreram há mais de vinte anos do ajuizamento da presente ação; 6) a pretensão autoral apoiada nos arts. 557 e 559 do CC⁄02 não merece prosperar, porque estes dispositivos legais se aplicam a situações diversas do objeto dessa demanda, e além do mais o autor não narrou ou comprovou a ocorrência das hipóteses contidas neles; 7) foram observados os requisitos de validade e de eficácia do negócio jurídico realizado, sendo que durante os vinte e dois anos que se passaram entre a doação e o falecimento do doadora BELKISS, jamais foi questionado o ato de liberalidade; 8) PEDRO deve ter coagido a própria genitora para lavrar a escritura declaratória de fls. 13⁄15, que aparenta validade formal, mas seu conteúdo é "fajuto" (sic); 9) não existia nenhum constrangimento que sua avó BELKISS, ajuizasse ação para anular a doação que fez, considerando ainda que o seu pai, Carlos Eduardo, irmão do autor, que teria coagido a doadora, faleceu em 1992; e, 10) inexistiu doação inoficiosa e a escritura declaratória de fls. 13⁄15 não altera a situação jurídica já consolidada, sendo impossível afastar a prescrição já consumada e nem sequer há provas de que o referido imóvel era o único bem da doadora (e-STJ, fls. 140⁄151).
O Magistrado de primeiro grau, em julgamento antecipado da lide, entendeu que tendo ocorrido suposto erro ou coação ou havido doação inoficiosa, reconheceu que a prescrição se enfeixou, razão pela qual extinguiu o feito com resolução do mérito (e-STJ, fls. 312⁄315).
A apelação interposta por PEDRO foi provida pelo Tribunal de origem, nos termos da seguinte ementa:
Os embargos de declaração opostos por ANALUIZA foram rejeitados (e-STJ, fls. 434).
Inconformada e com o falecimento de sua avó, só ANALUIZA interpôs recurso especial, com fundamento no art. 105, III, a e c, da CF, alegando, além de dissídio jurisprudencial, violação dos arts. 177 e 1.176 do CC⁄16, c⁄c art. 2.028 do CC⁄02, sustentando que 1) o direito de ação de PEDRO estava prescrito, pois a escritura pública de doação foi lavrada em dezembro de 1988, tendo o registro dela ocorrido aos 25⁄1⁄1989, e o prazo vintenário previsto no Código Civil de 1916 se encerrou em dezembro de 2008; 2) o pronunciamento da prescrição era medida impositiva sob pena de violação do princípio da segurança jurídica; 3) o próprio legislador estabeleceu que o cálculo da inoficiosidade deve ser feito no momento da liberalidade, posição que se amolda ao princípio da segurança jurídica; e, 4) a jurisprudência do STJ é uníssona no sentido de que o prazo prescricional para ajuizar ação em se que busca anular doação inoficiosa tem início a partir do registro do ato impugnado, e não com a abertura da sucessão.
Contrarrazões do recurso especial, na qual se alegou, em síntese, que não há se falar em prescrição para decretação de nulidade, pois o negócio jurídico nulo não gera efeitos (e-STJ, fls. 485⁄496).
É o relatório.
RELATOR | : | MINISTRO MOURA RIBEIRO |
RECORRENTE | : | ANALUIZA HILTZ VILLELA VON LACHMANN |
ADVOGADOS | : | ARMANDO BORGES DE ALMEIDA JUNIOR - RJ104371 |
DANIEL MAIA BERRIEL BARBOSA - RJ187396 | ||
CARLOS ALEXANDRE BORGES DE ALMEIDA - RJ202611 | ||
RECORRIDO | : | PEDRO CARLOS VILLELA |
ADVOGADOS | : | FELIX SOIBELMAN - RJ076117 |
GUSTAVO KLOH - RJ104856 |
Como dito no relatório, cuida-se de ação anulatória de doação ajuizada por PEDRO contra sua genitora BELKISS e contra sua sobrinha ANALUIZA, em razão da primeira ter doado para a segunda um bem imóvel que constituiria a integralidade do patrimônio daquela, em prejuízo da reserva da legítima destinada aos herdeiros necessários (doação inoficiosa).
O processo foi julgado extinto, com resolução do mérito, pelo Magistrado de primeiro grau, por ter reconhecido a ocorrência da prescrição, seja por suposto erro ou coação ou por ocorrência de doação inoficiosa, o que ensejou a interposição de apelação por PEDRO, que foi provida pelo Tribunal de Justiça local para reformar a sentença e determinar o exame do mérito da ação.
Inconformada e após o falecimento de sua avó, só ANALUIZA interpôs recurso especial insistindo na manutenção da sentença que reconheceu a prescrição.
O recurso especial não merece prosperar.
1) Da alegação de violação dos arts. 177 e 1.176 do CC⁄16 e 2.028 do CC⁄02.
ANALUIZA sustentou que o acórdão recorrido contrariou a lei material e a jurisprudência pacífica do STJ, haja vista que em se tratando de doação inoficiosa, o prazo prescricional vintenário para ajuizamento de ação anulatória, se conta do registro do instrumento público da doação no Cartório de Registro de Imóveis e não do falecimento do doador.
Acrescentou que tanto a lavratura da escritura pública da doação realizada aos 12⁄12⁄1988, quanto o seu registro na matrícula do imóvel ocorrida aos 25⁄1⁄1989, ocorreram há mais de vinte anos do ajuizamento desta ação anulatória (6⁄7⁄2010), tendo ocorrido a sua prescrição.
O acórdão ora impugnado afastou a prescrição reconhecida na sentença, no que interessa, firme nos seguintes termos:
Observa-se da transcrição supracitada que o Tribunal de origem tinha pleno conhecimento de que a jurisprudência do STJ emprega à pretensão anulatória de doação inoficiosa ocorrida na vigência do CC⁄16, o prazo prescricional vintenário tendo como termo inicial o registro da doação do bem imóvel na sua matrícula.
Contudo aquela Corte, com fundamento nas complexas relações familiares e nas regras de experiência, entendeu que o herdeiro prejudicado somente teria tomado conhecimento da doação com o óbito da autora da herança, contando daí o prazo prescricional para ajuizamento de ações para o reconhecimento da nulidade ou anulação da liberalidade. Ressalvou, no entanto, a hipótese de existência de prova de que o prejudicado sabia da doação inoficiosa, o que não teria ocorrido no caso.
Acrescentou, ainda, aquele colegiado local, que o prazo prescricional teria início na data do registro da doação no cartório de imóveis somente para resguardar terceiros, mas não para proteger o direito dos herdeiros necessários e familiares eventualmente prejudicados.
Antes de adentrar nessa seara, cumpre registrar que a questão envolvendo a "anulação" da doação realizada por BELKISS em favor da neta ANALUIZA, com base em suposta ocorrência de coação não foi devolvida para análise neste recurso especial e tampouco foi arguida nas contrarrazões oferecidas, estando a discussão restrita a ocorrência da doação inoficiosa simples.
Nesse cenário, em princípio, a questão submetida a análise desta e. Corte Superior consiste em saber qual o termo inicial do prazo prescricional para o ajuizamento de ação de "anulação" de suposta doação inoficiosa por herdeiro necessário da doadora, qual seja, se do registro da escritura de doação na matrícula do imóvel no cartório de registro ou se do óbito da doadora.
Registre-se, inicialmente, que tenho plena ciência de que a jurisprudência desta eg. Corte Superior já proclamou que a contagem do prazo prescricional para anulação da doação inoficiosa se inicia a partir do registro da liberalidade na matrícula do imóvel, e não do falecimento do doador, valendo destacar, nesse sentido, o REsp nº 1.049.078⁄SP, da relatoria do Ministro RICARDO VILLAS BÔAS CUEVA, DJe de 1º⁄3⁄2013. Dessa forma, a controvérsia estaria facilmente resolvida e o apelo nobre de ANALUIZA seria provido.
Contudo, em que pese tal entendimento, com a máxima vênia, ouso fazer algumas reflexões sobre o instituto da doação inoficiosa, de modo a perquirir que na hipótese de sua ocorrência, se o prejudicado exerce o direito de nulificá-la (invalidade absoluta) ou se apenas tem a pretensão de a anular (invalidade relativa), de modo a saber se o prazo é decadencial, prescricional, ou nenhum dos dois.
Tomando como ponto de partida a teoria da invalidade do negócio jurídico, constante dos arts. 166 a 184 do CC⁄02 (arts. 145 a 158 do CC⁄16), se faz necessário aferir a natureza jurídica do vício que atinge a doação inoficiosa de modo a melhor investigar sobre sua nulidade ou anulabilidade.
A doação inoficiosa é tratada no CC⁄02 no seu art. 549, que repetiu a redação contida no art. 1.176 do CC⁄16, dispondo que nula é também a doação quanto à parte que exceder à de que o doador, no momento da liberalidade, poderia dispor em testamento.
Embora o legislador ordinário não tenha conceituado o instituto, deve-se entender como doação inoficiosa, a liberalidade que ultrapassa a parte que o doador poderia dispor em testamento, atingindo a legítima do herdeiro necessário.
A respeito do instituto, NELSON ROSENVALD diz que a doação inoficiosa é caracterizada pela prática de uma liberalidade, ultrapassando a metade disponível do patrimônio líquido do doador, ao tempo da prática do ato ("in" Código Civil Comentado, Coordenador Ministro Cezar Peluso, 9ª ed. rev. e atual. Barueri - SP: Manole, 2015, p. 568).
Outro dispositivo legal que auxilia na compreensão do instituto é o art. 544 do CC⁄02, que dispõe que a doação de ascendentes a descendentes, ou de um cônjuge a outro, importa adiantamento do que lhes cabe por herança, bem como o art. 1.846 do mesmo codex, que diz que pertence aos herdeiros necessários, de pleno direito, a meação dos bens da herança, constituindo a legítima.
Acrescente-se, também, a respeito do instituto da doação inoficiosa, o disposto no art. 2.007 do CC⁄02, que diz que são sujeitas à redução as doações em que se apurar excesso quanto ao que o doador poderia dispor, no momento da liberalidade.
O objetivo das normas citadas e, do próprio instituto da doação inoficiosa, sem dúvida alguma, é o de preservar a parte legítima dos herdeiros necessários, caso eles existam, dos descendentes e dos ascendentes, restringindo a liberdade de disposição patrimonial praticada em vida pelos genitores em favor dos filhos, de ascendentes, ou de terceiros, resguardando assim parte do patrimônio do autor da herança que lhes cabe ou caberia por direito.
Nesse mesmo sentido, a doutrina de NELSON ROSENVALD anota que o fundamento da vedação à doação inoficiosa é a proteção à legítima, explicitando um verdadeiro encontro entre a autonomia da vontade privada e a solidariedade familiar: a autonomia privada é explicitada pela possibilidade de o doador determinar, livremente, o destino da metade disponível do seu patrimônio; já a solidariedade familiar se concretiza pela garantia de uma preservação mínima do patrimônio para os componentes do núcleo familiar, visando ao bem comum (op. cit., p. 568).
CARVALHO SANTOS, comentando o art. 1.176 do CC⁄16 diz que a nulidade é a sancção imposta pela lei contra a violação do direitos dos herdeiros necessários à legítima, que por ella lhes é assegurada, podendo ela ser pedida, segundo a lição de Clóvis Beviláqua, pelas pessoas, que seriam herdeiras do doador, si este fallecesse na data da doação, ou que, realmente, o forem (Código Civil Brasileiro Interpretado. Direito da obrigações. Vol. XVI. 2ª ed. Ed. Freitas Barros. Rio de Janeiro, 1938, p. 404).
O ilustre jurista acrescenta, ainda, que o Código empresta à acção de nullidade o effeito de reduzir a liberalidade aos limites justos que não prejudiquem a legítima dos herdeiros necessários, isto é, aos limites legais, da quota disponível, somente dentro dos quaes é possível qualquer liberalidade (ob. cit., págs. 404⁄405).
Nesse mesmo sentido é a doutrina de CLÓVIS BEVILÁQUA, que, também comentando o art. 1.176 do CC⁄16, dizia que a doação inoficiosa é nula no excesso da legítima, mas esse excesso se aprecia no momento do doação, como se o doador falecesse nesse mesmo dia.
O saudoso jurista acrescenta que o doador sabe que não pode dar mais do que a metade de seus bens, se tiver herdeiros necessários, se tiver descendentes ou ascendentes; sabe que a parte excedente é nula (Código Civil comentado por Clóvis Beviláqua, 11ª ed. atualizada, Ed. Paulo de Azevedo Ltda. Rio de Janeiro, 1958, p. 276).
Já autores contemporâneos do timbre de GUSTAVO TEPEDINO, HELOÍSA HELENA BARBOSA e MARIA CELINA BODIN DE MORAES, comentando o art. 549 do CC⁄02, além de reproduzirem a observação de CLÓVIS BEVILÁQUA, no sentido de que a doação é nula no excesso da legítima, trazem a seguinte contribuição sobre o instituto em comento:
Tendo em conta essas preciosas lições doutrinárias, sob a égide do CC⁄16 e do CC⁄02, pode-se afirmar que na hipótese de ocorrência de doação inoficiosa, cabe ao herdeiro necessário prejudicado com a liberalidade excessiva do doador, ajuizar ação para preservar o seu direito à legítima (segundo o art. 1.846 do CC⁄02, é seu de pleno direito), visando reduzir a disposição patrimonial abundante à parte disponível do patrimônio do doador, ou seja, a que ele poderia livremente dispor.
Definido o objetivo da doação inoficiosa - preservação do direito à legítima -, e, considerando que o disposto no art. 549 do CC⁄02 (art. 1.176 do CC⁄16), traz em seu bojo norma proibitiva que diz taxativamente ser o ato nulo, em parte, então, a doação que exceder a legítima, caracteriza, aparentemente, nulidade textual ou expressa (art. 166 do CC⁄02 - é nulo o negócio jurídico quando: V) a lei taxativamente o declarar nulo).
NELSON ROSENVALD, a este respeito, diz que toda e qualquer alienação gratuita que ultrapasse a metade disponível (invadindo a legítima, pertencente aos herdeiros necessários, que são os descendentes, os ascendentes e o cônjuge sobrevivente, a teor do art. 1.845 do Código Civil) será passível de nulificação por esses interessados, eis que eles detém, de pleno direito, a legítima (art. 1.789 e 1.846 do CC).
Ele ainda acrescenta que a caracterização dessa nulidade depende da concorrência de dois elementos diferentes: i) a existência de herdeiros necessários; ii) doação que ultrapassa o limite disponível, e enfatiza que se trata de norma de ordem pública, e por isso o juiz poderá conhecer, ex officio, a nulidade da doação inoficiosa, quando provada em alguma outra demanda, por exemplo, no inventário (ob. cit., p. 568).
O ato nulo, como é sabido, por resguardar o interesse público maior, em regra é ineficaz, e, também, nos termos do art. 169 do CC⁄02, não pode ser confirmado pelas partes, nem tampouco convalidado pelo tempo, devendo ele ser conhecido de ofício pelo juiz quando dele se inteirar, de modo que verificada uma situação de doação inoficiosa, o direito de preservação da legítima pelo interessado não estaria sujeito a prazo prescricional, nem sequer decadencial.
Quem diz isso expressamente é VILSON RODRIGUES ALVES para quem em se tratando de hipótese de invalidade absoluta, ou nulidade, não há se cogitar de prazos de caducidade, "a fortiori", de prescrição, em se levando em conta a sistemática do Código Civil brasileiro de 2002 (Da Prescrição e da Decadência no Novo Código Civil. 3ª ed. rev. ampl. e atual. Campinas-SP: Servanda. 2006, p. 169).
Nessa seara, tanto a natureza da ação, quanto a sentença nela proferida, será de caráter eminentemente declaratório, devendo o juiz da causa, ao tomar conhecimento da nulidade, admitir que o ordenamento jurídico sofreu grave transgressão e a reconhecer quanto ao negócio jurídico praticado, não servindo eventuais ações para reclamar prestações (condenatórias) e nem sequer criar, modificar ou extinguir direitos (constitutivas).
FLÁVIO TARTUCE, a respeito dos efeitos dos casos envolvendo a nulidade absoluta, ensina que quando há nulidade absoluta, deve ser proposta uma ação declaratória de nulidade que seguia, regra geral, o rito ordinário ( CPC⁄73), atual procedimento comum (CPC⁄2015), e que essa ação, diante da sua natureza predominantemente declaratória é imprescritível, ou melhor tecnicamente, não está sujeita a prescrição ou decadência, acrescentando que a imprescritibilidade também está justificada porque a nulidade absoluta envolve preceitos de ordem pública, impedindo, consequentemente, que o ato convalesça pelo decurso do tempo (art. 169 do CC). (Manual de Direito Civil: Volume único. 6ª ed. rev., atual. e ampl. Rio de Janeiro: Forense, São Paulo: Método, 2016, p. 293).
Contudo, não obstante tais preciosas contribuições doutrinárias, não se pode afirmar categoricamente que a consequência para a doação inoficiosa será a nulidade (invalidade absoluta) do negócio jurídico que poderia ser decretada a qualquer momento. É que o instituto apresenta características também pertencentes ao instituto à anulabilidade. Explico.
Não obstante a doação inoficiosa ter por finalidade a preservação da legítima de eventuais herdeiros necessários, em última instância, ela cuida, com precedência, de interesses patrimoniais individuais e privados deles e, como é sabido, há resistência doutrinária e também jurisprudencial em se afirmar que os interesses patrimoniais são imprescritíveis.
Também não se pode descuidar que a nulidade não atinge a doação como um todo, mas somente na parte que excede a parcela disponível do doador, bem como ela é reconhecida exclusivamente em favor dos que tiveram o direito à legítima afetado, sendo estes os únicos legitimados e interessados em ver o seu direito resguardado, não tutelando tal ação diretamente e prioritariamente o interesse público.
Em verdade, o instituto em estudo possui um regime jurídico peculiar, pois o texto legal que o rege fala em nulidade, mas para ela ser reconhecida depende de provocação do Judiciário pela vítima por meio de ação, e tem que demonstrar, além do interesse jurídico, que a doação ultrapassou o limite disponível do doador. Além do mais, como dito, a proteção da legítima interessa individualmente ao herdeiro prejudicado, existindo relação com o instituto da anulabilidade.
Essa assertiva é respaldada na doutrina de HUMBERTO THEODORO JÚNIOR quando tratou a respeito das características da nulidade:
Uma visão sobre o tema tem FLÁVIO TARTUCE que, tratando da doação inoficiosa, diz que o caso é de nulidade absoluta textual (art. 166, VII, do CC), mas uma nulidade diferente das demais, eis que atinge tão somente a parte que excede a legítima, ressaltando que o art. 549 tem como conteúdo o principio da preservação do contrato, que é anexo à função social dos contratos, uma vez que procura preservar, dentro do possível, a autonomia privada manifestada na doação (op. cit., p. 761).
Nesse cenário, em que há, de um lado, o entendimento de que a ocorrência de uma hipótese de doação inoficiosa importa nulidade absoluta do negócio jurídico e, de outro, de que o instituto também apresenta características da anulabilidade em razão do interesse envolvido, e, um terceiro, de que se trata de uma nulidade diferente, pois não importa a nulidade de todo o ato jurídico, tenho para mim que é prematuro sustentar a tese da imprescritibilidade.
Nessa marcha, passo a apurar se a defesa da legítima pelo herdeiro se dá por meio do exercício do direito de sua preservação ou de uma pretensão anulatória do negócio jurídico, de modo a perquirir se a hipótese é de decadência ou de prescrição, institutos jurídicos estes que são instrumentos da pacificação social, da certeza e da segurança jurídica.
Uma ferramenta preciosa utilizada, tanto na doutrina como pelos operadores do direito, para auxiliar na tormentosa tarefa de diferenciar tais institutos, é o clássico artigo jurídico publicado no ano de 1961 (RT 300⁄7 e 744⁄725), por AGNELO AMORIM FILHO, intitulado de "Critério Científico para Distinguir a Prescrição e a Decadência e para Identificar as Ações Imprescritíveis", que, de forma brilhante, associou os prazos prescricionais e decadenciais às respectivas ações de direito material.
Para ele, com suporte nas lições de CHIOVENDA, estão sujeitas a prescrição todas as ações condenatórias e somente elas, em virtude da morte da pretensão a que correspondem; estão sujeitas a decadência as ações constitutivas que têm prazo especial de exercício fixado em lei, em decorrência da morte do direito a que correspondem; e, por fim, por serem perpétuas (imprescritíveis), as ações constitutivas que não tem prazo especial para o exercício fixado em lei e todas as ações declaratórias.
Para chegar a tal conclusão, AGNELO AMORIM FILHO se valeu da lição de CHIOVENDA no sentido de que os direitos subjetivos se dividem em duas categorias:
1) A primeira compreende aqueles direitos que têm por finalidade um bem da vida a obter mediante uma prestação, positiva ou negativa, do sujeito passivo, denominados como direitos a uma prestação (ação material).
Segundo diz o autor, se lança mão das ações condenatórias quando se pretende obter do réu uma prestação (positiva ou negativa), de modo que somente elas podem sofrer os efeitos da prescrição, pois são as únicas ações por meio das quais se protegem judicialmente os direitos que irradiam pretensões ou seja, os direitos subjetivos feridos. A título de exemplo, cita os direitos que compõem as classes dos direitos pessoais e reais.
2) A segunda categoria dos direitos subjetivos, segundo ele, corresponde a dos chamados direitos potestativos, que compreende aqueles poderes que a lei confere a determinadas pessoas de influírem, com uma declaração de vontade, sobre situações jurídicas de outras, sem o concurso de vontade dessas. Como exemplo de direito potestativo, ele cita o poder que têm os interessados de promover a invalidação dos atos jurídicos anuláveis.
Ele sinaliza, ainda, que há certos direitos cujo exercício afeta, em maior ou menor grau, a esfera jurídica de terceiros, criando para estes um estado de sujeição, sem nenhuma contribuição de sua vontade, ou mesmo contra sua vontade, sendo eles os direitos potestativos.
A respeito do exércicio de tal direito, ele esclarece que não se pleiteia do réu nenhuma prestação, seja de dar, de fazer, de não fazer, de abster-se; mas, sim, visa o autor da ação criar, extinguir, ou modificar determinada situação jurídica, e isso é feito independentemente da vontade, ou mesmo contra a vontade da pessoa que fica sujeita aos efeitos do ato, sofrendo o réu uma sujeição.
Em artigo intitulado "Prescrição e Decadência no Anteprojeto do Código Civil", o Desembargador e Professor gaúcho MILTON DOS SANTOS MARTINS, em igual toada já concluía que fácil perceber-se, destarte, que em todas essas ações prescritíveis há elemento comum, significante de diferenciação, e esse é que em todas elas se demanda pelo objeto da relação jurídico-substancial, ou seja, a prestação.
E, em seguida, exemplificou: a ação do hospedeiro é para haver o pagamento da hospedagem. Pagamento da hospedagem é adimplemento de obrigação de pagar, prestação de pagar corresponde à hospedagem. Na relação jurídico-substancial de crédito estruturada pela hospedagem, o hospedeiro fornece eta e o hóspede deve cumprir a obrigação correspectiva, pagamento de quantia certa. É a sua prestação que está em vínculo.
Um pouco mais adiante, concluiu que alargando-se a conclusão, teríamos que a decadência se refere a ações que objetivam criação, modificação ou extinção da relação jurídico-substancial. Quando se quer alterar a relação jurídica, pode ocorrer a decadência desse direito, decadência dessa pretensão (Doutrinas Essenciais - Direito Civil, Parte Geral. Prescrição, Decadência e Prova: Vol. V. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2011, p. 546⁄7 e 550, Organizadores GILMAR FERREIRA MENDES e RUI STOCO).
Na mesma obra, NELSON LUIZ PINTO no artigo "O Fundamento da Pretensão Processual", discorre sobre a diferença entre os institutos da prescrição e da decadência:
VILSON RODRIGUES ALVES também compartilha do entendimento de que se regem por prazos de prescrição todas as pretensões condenatórias, por prazos de caducidade todas as pretensões constitutivas diante de anulabilidade e não se submetem a prazos de prescrição nem a prazos de caducidade as pretensões declarativas (ob. cit., 29). No entanto, sustenta que para o efeito de diferenciação conceitual entre o prazo prescricional e decadencial, interessa apenas a classificação das ações de direito material pelo peso de sua eficácia.
Para ele a ação de direito material declarativa tem como efeito preponderante uma declaração, seja ela positiva ou negativa, não se pedindo constituição nem condenação, mas apenas que se declare, ou que se torne claro, para se ver se está ou não diante de uma relação jurídica, ficando no plano da existência ou no plano da sua inexistência, restringindo-se o provimento jurisdicional a uma simples declaração, nada mais (op. cit., p. 100⁄101).
Assinala que as pretensões declarativas não são prescritíveis e que não há regra jurídica na sistemática do Código Civil que submeta o exercício da pretensão declaratória a prazo prescricional, uma vez que por ele somente se regem as pretensões condenatórias; e, com muito mais motivo, a prazo preclusivo ou de caducidade, porquanto somente as pretensões constitutivas é que podem ser precluíveis.
Já quanto a ação de direito material constitutiva, segundo VILSON RODRIGUES ALVES, há um plus em relação a ação de direito material meramente declarativa, e isso se dá porque, além da própria declaração que se contém na ação declarativa, ela visa também ou a constituir, ou a modificar, ou a extinguir uma relação jurídica. Assevera que esse efeito constitutivo positivo, modificativo ou negativo é o efeito preponderante, a força que caracteriza a ação como constitutiva, porque apesar do efeito declarativo, ele é sem a preponderância que tem na ação declarativa (op. cit., p. 104).
Ressalta, ainda, que diversamente da ação declarativa, na ação constitutiva o efeito jurídico que se busca provém da sentença, não importa se efeito excepcionalmente "ex tunc", tal qual nas ações de declaração de invalidade relativa (anulabilidade) e absoluta (nulidade), ou se "ex nunc", o que é a regra (op. cit., p. 105).
A respeito da ação de direito material condenatória, ele sustenta que seria aquela em que se pede que o juiz imponha uma condenação ao legitimado passivo, preponderando diante do que se deduziu em juízo, o elemento condenação.
Por fim, o autor diz que o elemento preponderante de sua eficácia é a força condenatória, e não a força executiva, e acrescenta que à ação executiva é que caberá levar ao plano fático o que a condenação estabeleceu no plano jurídico (op. cit., p. 107).
Finalmente, não posso deixar de trazer a valiosa contribuição doutrinária de JOSÉ FERNANDO SIMÃO que, com maestria singular, após um estudo aprofundado sobre os institutos da prescrição e da decadência, na tese que lhe valeu a livre-docência no Largo de São Francisco, apresentou a seguinte conclusão a respeito deles, nos seguintes termos:
Diante de tais lições doutrinárias a respeito da prescrição e da decadência, analisando o caso concreto, no meu sentir, não se pode considerar correto o entendimento que classifica como prescricional o prazo para "anular" o negócio jurídico realizado ainda em vida pela doadora, em flagrante prejuízo ao direito da legítima dos herdeiros necessários, pois é evidente que o exercício do direito de anular o excesso da doação não tem como correspondência um dever de prestação do sujeito passivo, cabendo a este apenas se sujeitar a tal efeito, tratando-se, portanto, de prazo decadencial, pois está associada inegavelmente a um direito potestativo.
A respeito da decadência, na exposição de motivos do novo Código Civil, JOSÉ CARLOS MOREIRA ALVES consignou que ela ocorre quando um direito potestativo não é exercido, extrajudicialmente ou judicialmente, dentro do prazo para exercê-lo, provocando a decadência desse direito potestativo.
Assinalou ainda MOREIRA ALVES que os direitos potestativos são direitos sem pretensão, porque são insusceptíveis de violação, já que a eles não se opõe um dever de quem quer que seja, mas uma sujeição de alguém (o meu de anular o negócio jurídico não pode ser violado pela parte a quem a anulação prejudica, pois esta está apenas sujeita a sofrer as consequências da anulação decretada pelo juiz, não tendo, portanto, dever algum que possa descumprir) (Parte Geral do Projeto do Código Civil Brasileiro. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 2003, p. 161).
No caso em tela, a análise sistemática da causa de pedir e do pedido formulado por PEDRO, revelou que ele visava, indubitavelmente, o reconhecimento da nulidade da doação por prejudicar o seu direito à legítima, e o seu pedido consistiu em ver declarada a ineficácia da liberalidade, com o regresso do bem doado ao patrimônio de BELKISS, para a manutenção da sua legítima (e-STJ, fl. 6), o que leva a conclusão de que a natureza jurídica da ação era constitutiva (negativa), estando associada diretamente a um direito potestativo dele, e portanto sujeito a prazo decadencial.
E se o direito de PEDRO está associado a prazo de decadência, surge a questão da definição do prazo para o exercício do seu direito.
Considerando que a doação inoficiosa foi realizada sob a égide do CC⁄16; e, como nele não existia prazo fixado para o exercício da ação constitutiva negativa de anulá-lo, a doutrina, inclusive a já destacada de AGNELO AMORIM FILHO, entendia que o direito buscado poderia ser exercido a qualquer momento, o que não parece ser a melhor solução para o caso em análise.
É que ele guarda uma peculiaridade que não pode ser desconsiderada na solução da celeuma posta, qual seja, o fato de o acórdão recorrido ter consignado expressamente que PEDRO, herdeiro necessário prejudicado com a doação inoficiosa, não tinha conhecimento da doação realizada em 1988, pelo menos até o falecimento da doadora, BELKISS, que se deu em 2010, na égide do CC⁄02.
Além dessa constatação não ter sido impugnada no apelo nobre de ANALUIZA e a Súmula nº 7 do STJ impedir a revisão de tal entendimento, não vislumbro como PEDRO poderia saber da doação realizada em 1998, pois os autos revelaram que BELKISS continuou morando normalmente no imóvel objeto da doação inoficiosa até o seu falecimento em 2010, até porque, no próprio instrumento público, ela reservou para si o usufruto do bem imóvel enquanto vivesse (e-STJ, fl. 157⁄159).
Alem do mais, a donatária ANALUIZA, no período entre a doação (1998) e o falecimento de BELKISS (2010), não praticou nenhum ato inerente a propriedade, como a faculdade de usar, gozar e dispor da coisa, o que somente veio a ocorrer após a morte da doadora, quando ela ajuizou ação de imissão na posse do imóvel contra PEDRO (e-STJ, fl. 105), reforçando a afirmativa do seu desconhecimento da doação.
E se PEDRO não sabia da liberalidade, no meu entendimento, a doação impugnada efetivamente somente produziu efeitos após a morte de BELKISS, ou seja, quando ANALUIZA se investiu em todos os poderes inerentes a propriedade e se mostrou proprietária do imóvel.
Além do mais é uma tremenda covardia e foge totalmente a razoabilidade exigir que o herdeiro necessário, cujo direito à legítima foi violado, consultasse o cartório de registro públicos periodicamente para aferir se sua genitora havia alienado, a qualquer título, o bem imóvel no qual residiu até o seu falecimento.
Dessa forma, se a teor do art. 2.035 do CC⁄02, a validade do negócio e demais atos jurídicos constituídos antes da entrada em vigor deste Código obedece ao disposto nas leis anteriores, e se o mesmo dispositivo dispõe que os efeitos do ato jurídico forem produzidos na vigência deste Código, a ele se subordinam, então, a questão relativa ao prazo para o exercício do direito de desconstituir que emergiu da violação do art. 549 do CC⁄02, poderá ser equacionada.
Desde já esclareço que não estou defendendo, nem poderia, que o negócio jurídico existente, válido e consumado sob a égide do CC⁄16, não fique subordinado ao princípio do tempus regit actum, até porque a segurança jurídica exige que se preserve o ato jurídico aperfeiçoado sob a regência do direito anterior.
O que estou querendo dizer é que o evento morte da doadora na vigência do novo Código Civil produziu efeitos que se referem diretamente com a eficácia do negócio jurídico praticado no Código revogado, haja vista que envolve discussão a respeito do que pode ser objeto da herança. Lembre-se, por oportuno, que o escopo da ação é justamente o resguardo ou a preservação da legítima, daí a incidência, smj., do disposto no art. 2.035 do CC⁄02, que dispõe: A validade dos negócios e demais atos jurídicos, constituídos antes da entrada em vigor deste Código, obedece ao disposto nas leis anteriores, referidas no art. 2.045, mas os seus efeitos, produzidos após a vigência deste Código, aos preceitos dele se subordinam, salvo se houver sido prevista pelas partes determinada forma de execução.
Com efeito, é aplicável o art. 2.035 do CC⁄02, pois o pressuposto de sua incidência é a existência de negócio jurídico válido, cujos efeitos futuros, se não tiverem previsão no próprio negócio, serão regidos pela lei vigente à época de sua execução.
NELSON ROSENVALD, discorrendo sobre ele (art. 2.035 do CC⁄02), diz que a norma descrita no seu caput refere-se exatamente à retroatividade mínima, uma vez que o CC atuará de forma imediata para os negócios jurídicos passados apenas no que concerne ao que está por vir, sem tocar nos efeitos já consumados.
Acrescenta o jurista, ainda, que há uma correta separação entre os planos da validade e eficácia do negócio jurídico, sendo a validade disciplinada pela lei vigente ao tempo de sua conclusão, independetemente de qualquer alteração posterior. Porém, quanto à eficácia do negócio jurídico, aos contratos de execução sucessiva no tempo, cujos efeitos não foram previstos pelas partes, aplicaremos o CC⁄2002 para os contratos efetivados antes de sua vigência (op. cit, págs. 2.254 e 2.255).
Extrai-se dessa lição doutrinária que a questão relativa a validade do negócio jurídico é disciplinada pelo CC⁄16. Contudo, quanto a sua eficácia, considerando os efeitos futuros não previstos pelas partes, o tema se solve pelo CC⁄02.
Nessa medida, tenho para mim que o art. 179 do CC⁄02, que dispõe que quando a lei dispuser que determinado ato é anulável, sem estabelecer prazo para pleitear-se a anulação, será este de 2 (dois) anos, a contar da data da conclusão do ato, é a norma reguladora sobre o prazo decadencial para o exercício do direito de preservação da legítima.
Este dispositivo, que não tinha correspondência legislativa no CC⁄16, foi introduzido no ordenamento jurídico para resolver a questão das outras situações de anulabilidade a determinados atos em que a lei não explicitou prazo decadencial, tratando-se, portanto, de uma regra subsidiária. A título de exemplo, destaco a hipótese do art. 496 do CC⁄02, que prevê ação anulatória de venda de ascendente para descendente, sem estipular o prazo decadencial para o exercício de tal direito.
NELSON NERY e ROSA MARIA NERY, comentando o referido dispositivo legal, explicam que o prazo de dois anos nele previsto contados da conclusão do ato, é somente para os próprios partícipes do ato ou do negócio jurídico e, em se tratando de terceiros, conta-se o prazo do dia em que tomaram conhecimento do ato anulando (op. cit., p. 386).
Diante de todo o exposto, tenho para mim que a hipótese trazida não comporta prazo prescricional, mas sim prazo decadencial para o exercício do direito de proteção da legítima de PEDRO, que não foi atingido pela decadência, pois a ação foi ajuizada pouco tempo após tomar conhecimento da doação inoficiosa realizada por BELKISS, ou seja, dentro do prazo de dois anos previsto no art. 179 do CC⁄02.
Caso assim não entenda esta eg. Corte Superior, uma outra solução possível é concluir que, por se tratar de questão envolvendo nulidade absoluta, não seria a hipótese nem de prescrição, nem de decadência, com base na lição de PONTES DE MIRANDA, que, tratando a respeito da ação de inoficiosidade da doação, disse que a ação tem elemento desconstitutivo, que se refere ao contrato, mas, no tocante aos efeitos, é declaratória, pois o que não é não se pode desconstituir (p. 363).
Nesse mesmo sentido, CAIO MÁRIO, a respeito das nulidades de direito material, diz que elas, quando absolutas, são concretizações de interesse público superior e que não coincide com o das partes, de modo que podem ser declaradas independentemente dos requisitos para o reconhecimento das nulidades processuais (Instituições de direito civil. Vol. I. 12 ed. Rio de Janeiro: Forense, 1990, p. 405).
Nessas condições, pelo meu voto, NEGO PROVIMENTO ao recurso especial porque não se operou a decadência do direito de proteção da legítima de PEDRO.
Os honorários não foram arbitrados pelo Tribunal a quo e as partes se aquietaram a respeito.
Número Registro: 2018⁄0189785-0 | PROCESSO ELETRÔNICO | REsp 1.755.379 ⁄ RJ |
PAUTA: 12⁄03⁄2019 | JULGADO: 12⁄03⁄2019 |
RECORRENTE | : | ANALUIZA HILTZ VILLELA VON LACHMANN |
ADVOGADOS | : | ARMANDO BORGES DE ALMEIDA JUNIOR - RJ104371 |
DANIEL MAIA BERRIEL BARBOSA - RJ187396 | ||
CARLOS ALEXANDRE BORGES DE ALMEIDA - RJ202611 | ||
RECORRIDO | : | PEDRO CARLOS VILLELA |
ADVOGADOS | : | FELIX SOIBELMAN - RJ076117 |
GUSTAVO KLOH - RJ104856 |
RELATOR | : | MINISTRO MOURA RIBEIRO |
RECORRENTE | : | ANALUIZA HILTZ VILLELA VON LACHMANN |
ADVOGADOS | : | ARMANDO BORGES DE ALMEIDA JUNIOR - RJ104371 |
DANIEL MAIA BERRIEL BARBOSA - RJ187396 | ||
CARLOS ALEXANDRE BORGES DE ALMEIDA - RJ202611 | ||
RECORRIDO | : | PEDRO CARLOS VILLELA |
ADVOGADOS | : | FELIX SOIBELMAN - RJ076117 |
GUSTAVO KLOH - RJ104856 |
RELATOR | : | MINISTRO MOURA RIBEIRO |
RECORRENTE | : | ANALUIZA HILTZ VILLELA VON LACHMANN |
ADVOGADOS | : | ARMANDO BORGES DE ALMEIDA JUNIOR - RJ104371 |
DANIEL MAIA BERRIEL BARBOSA - RJ187396 | ||
CARLOS ALEXANDRE BORGES DE ALMEIDA - RJ202611 | ||
RECORRIDO | : | PEDRO CARLOS VILLELA |
ADVOGADOS | : | FELIX SOIBELMAN - RJ076117 |
GUSTAVO KLOH - RJ104856 |
Cuida-se de recurso especial interposto por ANALUIZA HILTZ VILLELA VON LACHMANN, com fundamento nas alíneas a e c do permissivo constitucional, contra acórdão do TJ⁄RJ.
Ação: de anulação de doação, ajuizada por PEDRO CARLOS VILLELA em face da recorrente, sua sobrinha, e da BELKISS NAZARETH NOTARE, sua genitora, de um imóvel localizado no bairro de Copacabana, no município do Rio de Janeiro-RJ. Na petição inicial, o recorrido afirma que a doação ocorrida em 12⁄12⁄1988 pela sua genitora em favor de sua sobrinha é nula, pois se tratava do único imóvel pertencente a ela e, assim, desrespeitou seus direitos como herdeiro necessário. Ressalte-se que o ajuizamento ocorreu em 23⁄06⁄2010 e que a doadora, genitora do recorrido, faleceu em 19⁄07⁄2010.
Sentença: declarou a prescrição da pretensão do recorrido.
Acórdão: deu provimento à apelação interposta pelo recorrido, afirmando que o termo inicial da prescrição é o óbito do doador, nas hipóteses em que os prejudicados por doação inoficiosa são os herdeiros necessários, conforme ementa do julgamento:
Embargos de declaração: opostos pela recorrente, foram rejeitados pelo Tribunal de origem.
Recurso especial: alega violação aos arts. 177, 1.176 e 2.028 do CC⁄2002. Sustenta, ainda, a existência de dissídio jurisprudencial, afirmando que a pretensão do recorrido, deveria ser declarada prescrita, de acordo com a jurisprudência desta Corte Superior.
Julgamento: na sessão de 13⁄03⁄2019, o Min. Moura Ribeiro, relator, negou provimento ao recurso especial e, após, o Min. Ricardo Cueva solicitou vistas.
É o relatório.
O propósito recursal consiste em determinar se há prescrição ou não referente ao pedido de anulação da doação inoficiosa, feita em 1988 pela genitora do recorrido em favor de sua neta. Conforme relatado anteriormente, o recorrido afirma não ter conhecimento desta doação até o ano de falecimento de sua genitora, pois esta havia reservado para si o usufruto do bem imóvel doado.
Este julgamento é de importância ímpar, pois joga novas luzes sobre antiga jurisprudência do STJ, que previa o prazo vintenário para a prescrição de ação de anulação de doação inoficiosa. Apenas a título de exemplo mencione-se o julgado desta Terceira Turma do ano de 2005:
Além disso, esta Terceira Turma já se manifestou acerca do termo inicial para a contagem do prazo prescricional, o qual seria a data do registro do ato na matrícula do imóvel, conforme ementa abaixo:
Deve-se iniciar este voto, enaltecendo a alta qualidade da pesquisa doutrina empreendida pelo Ministro relator, que foi orientada pelos melhores doutrinadores clássicos e modernos e que, em muitos aspectos, é praticamente exaustiva das questões investigadas. Desse modo, é necessário manifestar-me apenas de forma pontual.
Nos termos do acórdão recorrido, é ausente de dúvida que há na hipótese dos autos uma doação inoficiosa, entendida como a liberalidade que ultrapassa a metade do patrimônio líquido disponível do doador, no momento em que ela é feita. O fundamento para essa nulidade se encontra no art. 549 do CC⁄2002, que repete a redação do art. 1.176 do CC⁄1916, e sua função não é outra que salvaguardar a parte legítima dos herdeiros necessários.
Conforme a discussão doutrinária exposta pelo i. relator, a doação inoficiosa é nula naquilo que exceder a metade do patrimônio disponível do doador. Essa nulidade guarda contornos especiais em relação às demais, pois apresenta algumas características presentes nas situações de anulabilidade, tais como a existência de um interesse particular envolvido, a necessidade de provocação do Poder Judiciário pelo interessado e o fato de a nulidade não atingir todo o ato, mas apenas aquilo que exceder a legítima, o que demanda uma demonstração fática detalhada.
Contudo, apesar dessas peculiaridades, a doação inoficiosa não deixa de ser uma nulidade absoluta textual, como afirmado por FLAVIO TARTUCE (Manual de Direito Civil: volume único. 6ª ed. São Paulo: Método, 2016, p. 761), o que é corroborado por diversos outros doutrinadores, tais como NELSON ROSENVALD, VILSON RODRIGUES ALVES, GUSTAVO TEPEDINO e até por CLÓVIS BEVILACQUA, todos mencionados no primoroso voto do i. relator.
Assim, mantida esta qualidade de nulidade absoluta, apesar de características próprias, as consequências da ocorrência de uma doação inoficiosa devem ser as mesmas para os atos eivados de nulidade dessa natureza.
Neste ponto, ouso divergir do i. Ministro relator que, com cautela, afirma que seria prematuro sustentar a tese da imprescritibilidade. No entanto, como contido em seu próprio voto, não se trata dessa hipótese.
Após o levantamento doutrinário feito a partir da lição de AGNELO AMORIM FILHO, com base em CHIOVENDA, concordo com a conclusão do i. Ministro relator que a ação de anulação de doação inoficiosa não tem fundamento em uma pretensão, mas sim em um direito potestativo, pois cabe ao donatário de uma doação inoficiosa apenas se sujeitar à declaração de nulidade do que exceder a metade do patrimônio disponível do doador.
Apenas pela clareza da lição doutrinária, gostaria de rememorar as palavras do professor JOSÉ FERNANDO SIMÃO, a respeito da distinção entre prescrição e decadência:
Pelo exposto até o momento, tem-se que a doação inoficiosa é ato eivado de nulidade absoluta, a qual – por definição – não se convalida com o tempo e, assim, não está sujeita à prescrição, mas apenas à decadência. Aliás, há que se analisar o prazo decadencial apenas se houver prazo expressamente previsto no Código Civil para exercer o respectivo direito potestativo.
Dessa forma, rogando todas as vênias ao i. Ministro relator, não é necessária a discussão acerca da produção de efeitos sob a vigência do CC⁄2002, com base em seu art. 2.035.
Igualmente, não há aplicação aos autos do art. 179 do CC⁄2002, o qual prevê prazo de dois anos para a requisição de anulação, quando não houver outro disposto pelo próprio código.
Esse dispositivo, no entanto, trata de situações de anulabilidade, isto é, de nulidades relativas, as quais são passíveis de convalidação e, como afirmado anteriormente, a doação inoficiosa é uma nulidade absoluta textual e, assim, o prazo bienal previsto no art. 179 do CC⁄2002 não é aplicável à hipótese dos autos, pois incide apenas sobre situações de nulidades relativas.
Pode-se concluir, assim, que o CC⁄2002 repetiu a disposição contida no CC⁄1916, o qual também não previa um prazo decadencial para o exercício do direito potestativo de anulação da doação inoficiosa.
Não se olvida que, na vigência do CC⁄1916, este STJ firmou entendimento de que haveria um prazo prescricional de vinte anos para o ajuizamento da ação de anulação. Contudo, lançando novos olhares para essa matéria, essa não se mostra a solução mais condizente com o ordenamento jurídico pátrio, analisado de forma ampla e sistemática.
De fato, como muito bem descrito pelo i. Ministro relator, doutrinadores de alta relevância, tais como AGNELO AMORIM FILHO, já pugnavam por essa solução, qual seja, na impossibilidade de se atribuir um prazo prescricional para a ação de anulação de doação inoficiosa, pois sequer se prescrição seria a hipótese.
Apenas para acrescentar alguns autores da doutrina que pugnam por essa solução, YUSSEF SAID CAHALI também sustenta que a melhor solução para a doação inoficiosa, à luz do art. 549 do CC⁄2002 e de toda sua regulamentação acerca das nulidades, seria sua declaração como ato nulo, pois inaplicável qualquer prazo prescricional para o pedido de anulação (Prescrição e Decadência. São Paulo: RT, 2008, p. 218). Nesse mesmo sentido, podemos mencionar PABLO STOLZE CAGLIANO (O Contrato de Doação. São Paulo: Saraiva: 2006).
Em conclusão, a partir das considerações acima e da pesquisa doutrina empreendida pelo i. Ministro relator, tem-se que a doação inoficiosa é uma hipótese de nulidade absoluta, sobre a qual não incide prazo prescricional, sendo impossível sua convalidação pela passagem do tempo. Ademais, igualmente ao CC⁄1916, o CC⁄2002 não previu qualquer prazo decadencial para o ajuizamento da ação para sua anulação. Em resumo, concorda-se com a outra solução antevista pelo relator, na parte final de seu voto.
Forte nessas razões, rogando todas as vênias, NEGO PROVIMENTO ao recurso especial, com fundamento parcialmente distinto daquele apresentado pelo i. Ministro relator.
Número Registro: 2018⁄0189785-0 | PROCESSO ELETRÔNICO | REsp 1.755.379 ⁄ RJ |
PAUTA: 12⁄03⁄2019 | JULGADO: 07⁄05⁄2019 |
RECORRENTE | : | ANALUIZA HILTZ VILLELA VON LACHMANN |
ADVOGADOS | : | ARMANDO BORGES DE ALMEIDA JUNIOR - RJ104371 |
DANIEL MAIA BERRIEL BARBOSA - RJ187396 | ||
CARLOS ALEXANDRE BORGES DE ALMEIDA - RJ202611 | ||
RECORRIDO | : | PEDRO CARLOS VILLELA |
ADVOGADOS | : | FELIX SOIBELMAN - RJ076117 |
GUSTAVO KLOH - RJ104856 |
RELATOR | : | MINISTRO MOURA RIBEIRO |
RECORRENTE | : | ANALUIZA HILTZ VILLELA VON LACHMANN |
ADVOGADOS | : | ARMANDO BORGES DE ALMEIDA JUNIOR - RJ104371 |
DANIEL MAIA BERRIEL BARBOSA - RJ187396 | ||
CARLOS ALEXANDRE BORGES DE ALMEIDA - RJ202611 | ||
RECORRIDO | : | PEDRO CARLOS VILLELA |
ADVOGADOS | : | FELIX SOIBELMAN - RJ076117 |
GUSTAVO KLOH - RJ104856 |
Número Registro: 2018⁄0189785-0 | PROCESSO ELETRÔNICO | REsp 1.755.379 ⁄ RJ |
PAUTA: 12⁄03⁄2019 | JULGADO: 04⁄06⁄2019 |
RECORRENTE | : | ANALUIZA HILTZ VILLELA VON LACHMANN |
ADVOGADOS | : | ARMANDO BORGES DE ALMEIDA JUNIOR - RJ104371 |
DANIEL MAIA BERRIEL BARBOSA - RJ187396 | ||
CARLOS ALEXANDRE BORGES DE ALMEIDA - RJ202611 | ||
RECORRIDO | : | PEDRO CARLOS VILLELA |
ADVOGADOS | : | FELIX SOIBELMAN - RJ076117 |
GUSTAVO KLOH - RJ104856 |
O SENHOR MINISTRO MARCO AURÉLIO BELLIZZE:
A controvérsia submetida ao exame do colegiado está em saber qual é o prazo prescricional, bem como o seu termo inicial, para o ajuizamento da ação de anulação de doação inoficiosa ocorrida em 12⁄12⁄1988, portanto, sob a égide do Código Civil de 1916.
Rememora-se a moldura fática delineada na origem, segundo a qual, em 12⁄12⁄1998, Belkiss Nazareth Notare doou à sua neta Analuiza Villela, com reserva de usufruto, a integralidade do seu patrimônio, constituído de um único imóvel. O registro da doação deu-se em 25⁄1⁄1989.
Em 6⁄7⁄2010, Pedro Carlos Villela, filho de Belkiss Nazareth Notare, promoveu a subjacente ação de anulação de doação inoficiosa contra sua genitora (a doadora) e sua sobrinha (a donatária), sob o argumento, em síntese, de que a doação não respeitou a legítima do herdeiro necessário, pois o imóvel, objeto da liberalidade, constituía, na ocasião do negócio jurídico, a integralidade do patrimônio da doadora. Posteriormente, em 19⁄7⁄2010, Belkiss Nazareth Notare faleceu.
Em primeira instância, tomando-se como termo inicial o registro da doação em Cartório, o Juízo a quo pronunciou o transcurso do prazo vintenário prescricional da pretensão (em data, inclusive, anterior à vigência do Código Civil de 2002), sob o fundamento de que:
O Tribunal de origem, por maioria de votos, entendeu por bem dar provimento ao recurso de apelação do autor, por compreender que o termo inicial da prescrição da pretensão destinada a nulificar doação inoficiosa dá-se a partir do óbito do doador, e não do registro do instrumento de doação, salvo se houver interesse de terceiro a se resguardar. Da fundamentação adotada no voto condutor extrai-se o seguinte excerto:
No presente recurso especial, a donatária defende, a pretexto de violação dos arts. 177 e 1.176 do Código Civil; e 2.028 do Código Civil de 2002, a ocorrência da prescrição vintenária, tomando-se, como termo inicial, a data do registro da doação no Registro de Imóveis, e não a data do óbito da doadora.
O voto do relator, Ministro Moura Ribeiro, com citação de vasta doutrina especializada sobre o tema, concluiu que o direito do herdeiro prejudicado pela doação inoficiosa de pleitear a sua anulação constitui um direito potestativo, sujeito a prazo decadencial, e não prescricional.
Assinalou S. Exa que, embora o negócio jurídico tenha sido constituído sob a égide do Código Civil de 1916, cujas normas devem disciplinar as questões afetas à validade do negócio jurídico, "o evento morte da doadora na vigência do novo Código Civil produziu efeitos que se referem diretamente com a eficácia do negócio jurídico praticado no Código revogado, haja vista que envolve discussão a respeito do que pode ser objeto da herança". Entendeu, assim, que "se a teor do art. 2.035 do CC⁄02, a validade do negócio e demais atos jurídicos constituídos antes da entrada em vigor deste Código obedece ao disposto nas leis anteriores, e se o mesmo dispositivo dispõe que os efeitos do ato jurídico forem produzidos na vigência deste Código, a ele se subordinam, então, a questão relativa ao prazo para o exercício do direito de desconstituir, que emergiu da violação do art. 549 do CC⁄02, poderá ser equacionada".
Concluiu, também, que "o art. 179 do CC⁄02, que dispõe que quando a lei dispuser que determinado ato é anulável, sem estabelecer prazo para pleitear-se a anulação, será este de 2 (dois) anos, a contar da data da conclusão do ato, é a norma reguladora sobre o prazo decadencial para o exercício do direito de preservação da legítima". Esse prazo, no caso, há de ser contado a partir do falecimento da doadora, o que enseja a constatação de que o direito potestativo de anulação foi exercido dentro do prazo decadencial.
A Ministra Nancy Andrighi, por fundamentação diversa, acompanhou o relator. Compreendeu S. Exa. que a doação inoficiosa consiste em nulidade absoluta textual, nos exatos termos do art. 549 do CC⁄2002, que repete a redação do art. 1.176 do CC⁄1976, de forma que não está sujeita à prescrição, mas apenas à decadência. Nessa medida, considerando que a lei não previu, tanto no CC⁄1916, quanto no CC⁄2002, prazo decadencial específico para o seu exercício, concluiu que a solução mais condizente com o ordenamento jurídico pátrio seria a de que a anulação pode ser requerida a qualquer tempo, razão pela qual também negou provimento ao recurso especial da demandada.
O Ministro Ricardo Villas Bôas Cueva inaugurou a divergência, para conferir provimento ao recurso especial, restaurando a sentença que pronunciou a prescrição. Em detida observância ao entendimento jurisprudencial perfilhado por esta Corte de Justiça, assentou S. Exa que "o prazo prescricional conta-se a partir do registro do ato jurídico que se pretende anular". E, para subsidiar sua conclusão, teceu, ainda, as seguintes considerações: "(i) que a questão controvertida no apelo nobre está adstrita ao termo inicial da prescrição; (ii) que a jurisprudência consagrada nesta Corte ostenta bases jurídicas sólidas; (iii) que inexiste qualquer peculiaridade que demande a adoção de solução diversa daquela alcançada nos precedentes referidos; e (iv) que o Superior Tribunal de Justiça, especialmente, dada a sua missão constitucional, deve primar pela estabilidade, integridade e coerência da sua jurisprudência (artigo 926 do CPC⁄2015)".
O Ministro Paulo de Tarso Sanseverino acompanhou a divergência, consignando que, "há anos este Superior Tribunal de Justiça, em nome da paz social, fixou e vem seguindo o entendimento segundo o qual, diante da inexistência de previsão legal específica, aplicam-se às ações de redução de doação inoficiosa o mesmo prazo previsto para as ações pessoais, contando a partir da data do registro dos contratos no ofício do registro imobiliário". E, concluiu, no ponto: "se a doação ocorreu sob a égide do Código Civil anterior e após o decurso de mais de metade do lapso temporal que nele era previsto (art. 2.028, CC⁄2002), aplicar-se-á o prazo vintenário (art. 177, CC⁄1916); mas, caso tenha se sucedido posteriormente a entrada em vigor do Novo Código Civil, o prazo será de dez anos (art. 205, CC⁄02)".
Em razão da intensa divergência dos posicionamentos — todos ponderáveis —, verificada, aliás, desde a origem, pedi vista dos autos para maior reflexão.
De início, relevante considerar que, sob a sistemática do Código Civil de 1916, em que os prazos decadenciais e prescricionais foram inadvertidamente alocados sob uma mesma denominação e no mesmo capítulo, conferindo-lhes tratamento único, estabeleceu-se, no caso de não haver prazo prescricional específico, que a pretensão deveria ser exercida no prazo de 20 (vinte) anos para as ações pessoais, e de 10 (dez) ou de 15 (quinze) anos, para as ações reais (art. 177).
Diante da ausência de aporte técnico e científico, coerente com tais institutos, causador, por conseguinte, de inúmeras dúvidas em sua aplicação prática, tal critério não foi reproduzido no Código Civil de 2002.
Efetivamente, o Código Civil de 2002, com esteio, em boa extensão, no critério científico proposto pelo Prof. Agnelo Amorim Filho, citado no voto apresentado pelo relator, correlacionou a natureza do provimento judicial perseguido, em paralelo aos direitos subjacentes (classificados em meramente facultativos⁄subjetivos e potestativos), com os institutos da prescrição e da decadência.
Em síntese, para as ações condenatórias, em que se pretende a realização de uma prestação por parte do demandado, em razão da violação do direito do autor, no que se insere, indistintamente, toda a gama de direitos pessoais e reais, reconheceu-se a sua prescritibilidade (e somente destas), atribuindo-lhes prazos específicos para inúmeras hipóteses (muitas delas não previstas no CC⁄1916), constantes do art. 206, e um prazo geral, decenário, constante do art. 205, aplicável apenas residualmente.
Para as ações constitutivas, nas quais se buscam a criação, a modificação ou a extinção de um estado jurídico, em razão do exercício de um direito potestativo (que, por definição, não comporta violação, apenas sujeição pela parte adversa), estipularam-se prazos decadenciais esparsos no Código Civil. Ainda para essa categoria, se não houver prazo específico na lei para o exercício do direito potestativo, este é exercitável a qualquer tempo, conferindo-se-lhe o caráter de perpetuidade (v.g, ação de divisão, várias ações de estado, inclusive a investigatória de paternidade; de demarcação, e de quase todas as ações de nulidade).
Por fim, para as ações declaratórias (puras), nas quais se pretende tão somente a obtenção de uma certeza jurídica, atribuiu-se a elas o caráter de imprescritibilidade (ou melhor, de perpetuidade), já que não relacionadas nem à reparação⁄proteção de um direito subjetivo, nem ao exercício de um direito potestativo.
Como se verifica, o Código Civil atual, além de preceituar novas pretensões com prazo de exercício específico (anteriormente não contempladas), não mais adota a distinção entre ações pessoais e reais, para a fixação do prazo residual, agora de 10 (dez) anos, não se afigurando possível, para as relações jurídicas regidas pelo atual diploma civil, a utilização de tal critério.
Ainda que seja este o tratamento ofertado à matéria em análise pelo Código Civil vigente — que guarda, em si, indiscutível aprimoramento técnico e científico, sobretudo, quando comparado com o diploma civil anterior —, parece-me incontornável a conclusão de que o Código Civil de 2002 não tem nenhuma aplicação à hipótese dos autos, devendo-se observar, em nome da isonomia e da segurança jurídica, a interpretação jurisprudencial consolidada pelo STJ à legislação infraconstitucional regente do caso, que é o Código Civil de 1916.
No particular, o negócio jurídico que se pretende anular, por meio da subjacente ação, deu-se, segundo a moldura fática delineada na origem, em 12⁄12⁄1998, cujo registro ocorreu em 25⁄1⁄1989. É de se reconhecer, assim, que a constituição e a validade da doação submetem-se, necessariamente, ao Código Civil de 1916.
Saliente-se, no ponto, que, a fim de resolver eventuais conflitos de direito intertemporal, o Código Civil de 2002, ao revogar globalmente o diploma civil de 1916, dispôs em seu art. 2.035 que a validade dos demais negócios jurídicos, constituídos sob a égide do Código Civil de 1916, deve se conformar com as suas disposições, mas os seus efeitos, produzidos após a vigência deste Código, aos preceitos dele se subordinam, salvo se houver sido prevista pelas partes determinada forma de execução".
O relator, em seu voto, sem olvidar a aplicação de tal disposição, entende que a hipótese dos autos guardaria, em sua compreensão, significativa particularidade, já que o herdeiro alegadamente prejudicado somente teria tido conhecimento da doação após a morte da doadora (19⁄7⁄2010), o que revelaria que os efeitos do negócio jurídico teriam repercussão somente após esse fato, a atrair, assim, a aplicação do Código Civil de 2002.
Permissa maxima venia, a subjacente ação não está a discutir os efeitos da doação. A repercussão dos efeitos da doação alegadamente inoficiosa, no caso, somente tem reflexos à reboque da pretensa anulação. Na espécie, o que se pretende com a subjacente ação é, em verdade, infirmar justamente a validade do negócio jurídico, naquilo que sobeja a legítima, cuja regência, por expressa determinação legal, há de observar o princípio tempus regit actum.
Nessa medida, a pretensão de anular o negócio jurídico, inclusive no que alude ao prazo para o seu exercício, submete-se, necessariamente, às disposições do Código Civil de 1916, devendo-se atentar, sobretudo por razões de segurança jurídica e isonomia, para a interpretação jurisprudencial então conferida pelo Superior Tribunal de Justiça a tal hipótese.
Sem tecer, no ponto, nenhum juízo de valor quanto à correção do critério utilizado na sistemática adotada pelo legislador no Código Civil de 1916 — in totum superado pelo Código Civil atual —, estipulava-se que, no caso de não haver prazo específico "prescricional"estabelecido em capitulo no qual simplesmente não se divisava a sua natureza (se prescricional, ou se decadencial), a pretensão haveria de ser exercida no prazo de 20 (vinte) anos para as ações pessoais, e de 10 (dez) ou de 15 (quinze) anos, para as ações reais (art. 177).
Como bem consignado no voto do Ministro Ricardo Villas Bôas Cueva, esta Corte de Justiça, notadamente nos casos regulados pelo diploma civil de 1916, perfilha o posicionamento de que, em se tratando de ação de nulidade de doação inoficiosa, por se tratar de ação pessoal, incide o prazo prescricional vintenário, cuja fluência inicia-se a partir do registro do ato jurídico que se pretende anular.
Em atenção a esse entendimento, é de se reconhecer, de fato, a fluência do prazo prescricional vintenário, levando-se em conta que o registro do negócio jurídico deu-se em 25⁄1⁄1989, enquanto a ação anulatória subjacente somente foi promovida em 6⁄7⁄2010.
Assim, em hipótese regulada pelo Código Civil de 1916, não reputo adequado adotar interpretação diversa daquela há muito consolidada pelo Superior Tribunal de Justiça, segundo a sistemática conferida pelo diploma civil anterior, sem comprometer a isonomia e a segurança jurídica,
Também com as mais respeitosas vênias à Ministra Nancy Andrighi, não se me afigura possível afastar-se da sistemática do Código Civil de 1916 e, principalmente, da orientação jurisprudencial conferida por esta Corte de Justiça às situações reguladas por aquele diploma, pelo fato de ter o art. 549 do Código Civil de 2002 reproduzido os termos estabelecidos no art. 1.176 do CC⁄1916, preceituando, assim, que a doação inoficiosa já consistia em nulidade absoluta textual, o que enseja a conclusão, segundo S. Exa, de que o prazo se submete (e já se submetia) à decadência, e não à prescrição, podendo, pois, ser requerida a qualquer tempo.
Diversamente, tem-se que a sistemática do Código Civil de 1916, de indiscutível atecnia jurídica, aplicável à espécie, não comporta tal conclusão, já que, para as ações não especificadas no art 178, a correlata pretensão, se pessoal, haveria de ser promovida no prazo de 20 (vinte) anos, nos termos do art. 177 c⁄c 179, entendimento in totum respaldado pela jurisprudência desta Corte de Justiça.
Registro, sem prejuízo, aderir integralmente à compreensão de que o negócio jurídico nulo, tal como o é a doação inoficiosa por expressa determinação legal, não se afigura suscetível de confirmação pelas partes, tampouco convalesce pelo decurso do tempo, o que conduz, também a meu juízo, à conclusão de que a correlata ação anulatória constitui direito potestativo submetido à decadência. Esse entendimento, entretanto, parece-me ter aplicação unicamente às hipóteses reguladas pelo Código Civil de 2002 (ut arts. 166 e 169), o qual, primando pela boa técnica jurídica e pela operabilidade de seus termos, bem delimitou as hipóteses de prescrição e decadência.
Destaco, aliás, que tive a oportunidade de externar o entendimento na seara acadêmica, de que a pretensão de nulificar ou anular um negócio jurídico, ainda que objetive um pronunciamento judicial declaratório, encerra, também, a inerente finalidade de modificar o estado fático e jurídico das coisas, a evidenciar seu viés constitutivo (negativo), não se submetendo, pois, à prescrição.
Sobre a matéria, assinalei na ocasião que:
Assim, conquanto o entendimento ora externado não se aplique à hipótese dos autos, porque regulado integralmente pelo Código Civil de 1916, conforme se extrai das discussões travadas nas sessões de julgamento anteriores, a questão deve merecer, certamente, maior reflexão para os casos vindouros que sejam disciplinados pelo atual diploma civil, a redundar, inclusive, na alteração de modificação da jurisprudência do STJ, que ainda se vale do critério"ação pessoal"do diploma anterior para aplicar o prazo geral decenário, conforme se verifica dos precedentes citados pelo Ministro Paulo de Tarso Sanseverino em seu voto.
De fato, passados mais de 15 (quinze) anos da vigência do Código Civil de 2002, com destacada operabilidade de seus termos, sobretudo na disciplina da prescrição e decadência, mostra-se indevida a utilização de critérios então adotados pelo Código Civil de 1916 (tais como a distinção entre direitos reais e pessoais, a incidir, nesse último caso, o prazo geral), há muito hostilizados pela doutrina especializada e, por conseguinte, não reproduzidos pelo Código Civil de 2002.
Em arremate, na esteira dos fundamentos acima delineados, peço vênia ao relator, Ministro Moura Ribeiro e à Ministra Nancy Andrighi, que na conclusão o acompanhou, para aderir ao posicionamento divergente inaugurado pelo Ministro Ricardo Villas Bôas Cueva e secundado pelo Ministro Paulo de Tarso Sanseverino, com a ressalva de entendimento para vindouras situações que venham a ser reguladas pelo Código Civil de 2002, para dar provimento ao recurso especial, a fim de reconhecer a ocorrência de prescrição, extinguindo-se o processo com resolução de mérito.
É o voto.
Número Registro: 2018⁄0189785-0 | PROCESSO ELETRÔNICO | REsp 1.755.379 ⁄ RJ |
PAUTA: 12⁄03⁄2019 | JULGADO: 24⁄09⁄2019 |
RECORRENTE | : | ANALUIZA HILTZ VILLELA VON LACHMANN |
ADVOGADOS | : | ARMANDO BORGES DE ALMEIDA JUNIOR - RJ104371 |
DANIEL MAIA BERRIEL BARBOSA - RJ187396 | ||
CARLOS ALEXANDRE BORGES DE ALMEIDA - RJ202611 | ||
RECORRIDO | : | PEDRO CARLOS VILLELA |
ADVOGADOS | : | FELIX SOIBELMAN - RJ076117 |
GUSTAVO KLOH - RJ104856 |
Documento: 1800265 | Inteiro Teor do Acórdão | - DJe: 10/10/2019 |