6 de Julho de 2022
- 2º Grau
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Detalhes da Jurisprudência
Órgão Julgador
Publicação
Julgamento
Relator
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Inteiro Teor
Superior Tribunal de Justiça Revista Eletrônica de Jurisprudência |
RELATOR | : | MINISTRO LUIS FELIPE SALOMÃO |
RECORRENTE | : | SAMUEL CUKIERMAN |
RECORRENTE | : | MAURO CUKIERMAN |
RECORRENTE | : | ROGERIO CUKIERMAN |
ADVOGADOS | : | SÉRGIO SENDER - RJ033267 |
MÔNICA SENDER - RJ055404 | ||
RECORRIDO | : | NÃO INDICADO |
RECURSO ESPECIAL. CIVIL E PROCESSO CIVIL. SUCESSÕES. EXISTÊNCIA DE TESTAMENTO. INVENTÁRIO EXTRAJUDICIAL. POSSIBILIDADE, DESDE QUE OS INTERESSADOS SEJAM MAIORES, CAPAZES E CONCORDES, DEVIDAMENTE ACOMPANHADOS DE SEUS ADVOGADOS. ENTENDIMENTO DOS ENUNCIADOS 600 DA VII JORNADA DE DIREITO CIVIL DO CJF; 77 DA I JORNADA SOBRE PREVENÇÃO E SOLUÇÃO EXTRAJUDICIAL DE LITÍGIOS; 51 DA I JORNADA DE DIREITO PROCESSUAL CIVIL DO CJF; E 16 DO IBDFAM.
1. Segundo o art. 610 do CPC⁄2015 (art. 982 do CPC⁄73), em havendo testamento ou interessado incapaz, proceder-se-á ao inventário judicial. Em exceção ao caput, o § 1º estabelece, sem restrição, que, se todos os interessados forem capazes e concordes, o inventário e a partilha poderão ser feitos por escritura pública, a qual constituirá documento hábil para qualquer ato de registro, bem como para levantamento de importância depositada em instituições financeiras.
2. O Código Civil, por sua vez, autoriza expressamente, independentemente da existência de testamento, que, "se os herdeiros forem capazes, poderão fazer partilha amigável, por escritura pública, termo nos autos do inventário, ou escrito particular, homologado pelo juiz" (art. 2.015). Por outro lado, determina que "será sempre judicial a partilha, se os herdeiros divergirem, assim como se algum deles for incapaz"(art. 2.016) – bastará, nesses casos, a homologação judicial posterior do acordado, nos termos do art. 659 do CPC.
3. Assim, de uma leitura sistemática do caput e do § 1º do art. 610 do CPC⁄2015, c⁄c os arts. 2.015 e 2.016 do CC⁄2002, mostra-se possível o inventário extrajudicial, ainda que exista testamento, se os interessados forem capazes e concordes e estiverem assistidos por advogado, desde que o testamento tenha sido previamente registrado judicialmente ou haja a expressa autorização do juízo competente.
4. A mens legis que autorizou o inventário extrajudicial foi justamente a de desafogar o Judiciário, afastando a via judicial de processos nos quais não se necessita da chancela judicial, assegurando solução mais célere e efetiva em relação ao interesse das partes. Deveras, o processo deve ser um meio, e não um entrave, para a realização do direito. Se a via judicial é prescindível, não há razoabilidade em proibir, na ausência de conflito de interesses, que herdeiros, maiores e capazes, socorram-se da via administrativa para dar efetividade a um testamento já tido como válido pela Justiça.
5. Na hipótese, quanto à parte disponível da herança, verifica-se que todos os herdeiros são maiores, com interesses harmoniosos e concordes, devidamente representados por advogado. Ademais, não há maiores complexidades decorrentes do testamento. Tanto a Fazenda estadual como o Ministério Público atuante junto ao Tribunal local concordaram com a medida. Somado a isso, o testamento público, outorgado em 2⁄3⁄2010 e lavrado no 18º Ofício de Notas da Comarca da Capital, foi devidamente aberto, processado e concluído perante a 2ª Vara de Órfãos e Sucessões.
6. Recurso especial provido.
Vistos, relatados e discutidos estes autos, os Ministros da Quarta Turma do Superior Tribunal de Justiça acordam, por unanimidade, dar provimento ao recurso especial, nos termos do voto do Sr. Ministro Relator. Os Srs. Ministros Raul Araújo, Antonio Carlos Ferreira e Marco Buzzi (Presidente) votaram com o Sr. Ministro Relator.
Ausente, justificadamente, a Sra. Ministra Maria Isabel Gallotti.
MINISTRO LUIS FELIPE SALOMÃO
Relator
RELATOR | : | MINISTRO LUIS FELIPE SALOMÃO |
RECORRENTE | : | SAMUEL CUKIERMAN |
RECORRENTE | : | MAURO CUKIERMAN |
RECORRENTE | : | ROGERIO CUKIERMAN |
ADVOGADOS | : | SÉRGIO SENDER - RJ033267 |
MÔNICA SENDER - RJ055404 | ||
RECORRIDO | : | NÃO INDICADO |
O SENHOR MINISTRO LUIS FELIPE SALOMÃO (Relator):
1. Lea Cukierman faleceu em 1º⁄2⁄2015, deixando em favor do marido, Samuel Cukierman, e dos dois filhos maiores Mauro Cukierman e Rogério Cukierman, testamento público, devidamente processado e concluído perante a 2ª Vara de Órfãos e Sucessões do Rio de Janeiro, com total concordância dos herdeiros e da Procuradoria do Estado, ficando estabelecido que toda a parte disponível da herança seria destinada ao viúvo.
Em sequência, deu-se início ao inventário judicial, no qual foi requerida a partilha de bens – um imóvel e cotas socias de três empresas –, tendo aquele juízo determinado o processamento da apuração de haveres em três novos processos (distribuídos por dependência).
No entanto, por se tratar de sucessão simples, envolvendo herdeiros maiores, capazes e concordes, diante das novas diretrizes da Corregedoria-Geral do Estado, a despeito de existir testamento já cumprido, requereram os interessados a extinção do feito e a autorização para que o processamento do inventário e da partilha de bens ocorresse de forma extrajudicial.
O magistrado de piso indeferiu o pleito, pelos seguintes fundamentos:
Interposto agravo de instrumento, a Segunda Câmara Cível do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro negou provimento ao recurso, nos termos da seguinte ementa:
Irresignados, interpõem recurso especial com fundamento nas alíneas a e c do permissivo constitucional, por negativa de vigência ao art. 610 e § 1º, do CPC⁄15, além de dissídio jurisprudencial.
Sustentam que, "apesar do teor do caput do artigo 610 do novo CPC, o § 1º expressamente permite o processamento do inventário pela via extrajudicial, desde que sejam os herdeiros capazes e concordes"; em verdade "o único impedimento para a aplicação do referido parágrafo primeiro é a existência de incapaz e não a de testamento".
Destacam que o Tribunais pátrios, por meio de provimento de suas Corregedorias de Justiça, têm admitido o inventário extrajudicial, ainda que envolva testamento, haja vista a celeridade alcançada e a garantia de liberdade de escolha dos herdeiros, considerando, na espécie, que o viúvo-meeiro conta com 85 anos de idade.
Argumentam que "este procedimento torna mais rápido o cumprimento do testamento, trazendo visíveis benefícios aos interessados, evitando desnecessárias formalidades e desafogando a enormidade de ações que assoberbam o Poder Judiciário, que ficará responsável por processar apenas aqueles inventários em que houver menores e⁄ou conflitos entre os herdeiros".
O recurso recebeu crivo de admissibilidade positivo na origem (fls. 105-109).
É o relatório.
RELATOR | : | MINISTRO LUIS FELIPE SALOMÃO |
RECORRENTE | : | SAMUEL CUKIERMAN |
RECORRENTE | : | MAURO CUKIERMAN |
RECORRENTE | : | ROGERIO CUKIERMAN |
ADVOGADOS | : | SÉRGIO SENDER - RJ033267 |
MÔNICA SENDER - RJ055404 | ||
RECORRIDO | : | NÃO INDICADO |
RECURSO ESPECIAL. CIVIL E PROCESSO CIVIL. SUCESSÕES. EXISTÊNCIA DE TESTAMENTO. INVENTÁRIO EXTRAJUDICIAL. POSSIBILIDADE, DESDE QUE OS INTERESSADOS SEJAM MAIORES, CAPAZES E CONCORDES, DEVIDAMENTE ACOMPANHADOS DE SEUS ADVOGADOS. ENTENDIMENTO DOS ENUNCIADOS 600 DA VII JORNADA DE DIREITO CIVIL DO CJF; 77 DA I JORNADA SOBRE PREVENÇÃO E SOLUÇÃO EXTRAJUDICIAL DE LITÍGIOS; 51 DA I JORNADA DE DIREITO PROCESSUAL CIVIL DO CJF; E 16 DO IBDFAM.
1. Segundo o art. 610 do CPC⁄2015 (art. 982 do CPC⁄73), em havendo testamento ou interessado incapaz, proceder-se-á ao inventário judicial. Em exceção ao caput, o § 1º estabelece, sem restrição, que, se todos os interessados forem capazes e concordes, o inventário e a partilha poderão ser feitos por escritura pública, a qual constituirá documento hábil para qualquer ato de registro, bem como para levantamento de importância depositada em instituições financeiras.
2. O Código Civil, por sua vez, autoriza expressamente, independentemente da existência de testamento, que, "se os herdeiros forem capazes, poderão fazer partilha amigável, por escritura pública, termo nos autos do inventário, ou escrito particular, homologado pelo juiz" (art. 2.015). Por outro lado, determina que "será sempre judicial a partilha, se os herdeiros divergirem, assim como se algum deles for incapaz"(art. 2.016) – bastará, nesses casos, a homologação judicial posterior do acordado, nos termos do art. 659 do CPC.
3. Assim, de uma leitura sistemática do caput e do § 1º do art. 610 do CPC⁄2015, c⁄c os arts. 2.015 e 2.016 do CC⁄2002, mostra-se possível o inventário extrajudicial, ainda que exista testamento, se os interessados forem capazes e concordes e estiverem assistidos por advogado, desde que o testamento tenha sido previamente registrado judicialmente ou haja a expressa autorização do juízo competente.
4. A mens legis que autorizou o inventário extrajudicial foi justamente a de desafogar o Judiciário, afastando a via judicial de processos nos quais não se necessita da chancela judicial, assegurando solução mais célere e efetiva em relação ao interesse das partes. Deveras, o processo deve ser um meio, e não um entrave, para a realização do direito. Se a via judicial é prescindível, não há razoabilidade em proibir, na ausência de conflito de interesses, que herdeiros, maiores e capazes, socorram-se da via administrativa para dar efetividade a um testamento já tido como válido pela Justiça.
5. Na hipótese, quanto à parte disponível da herança, verifica-se que todos os herdeiros são maiores, com interesses harmoniosos e concordes, devidamente representados por advogado. Ademais, não há maiores complexidades decorrentes do testamento. Tanto a Fazenda estadual como o Ministério Público atuante junto ao Tribunal local concordaram com a medida. Somado a isso, o testamento público, outorgado em 2⁄3⁄2010 e lavrado no 18º Ofício de Notas da Comarca da Capital, foi devidamente aberto, processado e concluído perante a 2ª Vara de Órfãos e Sucessões.
6. Recurso especial provido.
O SENHOR MINISTRO LUIS FELIPE SALOMÃO (Relator):
2. Cinge-se a controvérsia em definir se é possível o processamento do inventário extrajudicial quando há testamento do falecido, notadamente em se tratando de interessados maiores, capazes e concordes, devidamente acompanhados de seus patronos.
O Tribunal de origem, por maioria, seguindo a interlocutória de piso, decidiu pela impossibilidade do inventário administrativo, pelos seguintes fundamentos:
O voto vencido, por sua vez, asseverou que:
3. Nesse passo, observo que o testamento é um negócio jurídico pelo qual a pessoa capaz faz disposições de caráter patrimonial ou extrapatrimonial, para depois de sua morte ( CC, art. 1857), fazendo o testador amplo exercício de sua autonomia de vontade, seja quanto ao patrimônio seja em relação às questões existenciais, respeitados os limites da norma.
Com a morte, por meio da saisine, transmite-se a herança aos sucessores legítimos e testamentários, momento em que a universalidade de bens é definida em sua composição, por meio do inventário, bem como há a individualização da cota hereditária em relação a cada sucessor, por intermédio da partilha.
Nessa ordem de ideias, a Lei n. 11.441⁄2007, em normativo inovador, seguindo a linha da desjudicialização que atinge diversos países do mundo, autorizou a realização de alguns atos de jurisdição voluntária pela forma extrajudicial. A Resolução n. 35⁄2007, do CNJ, disciplinou especificamente o inventário e a partilha pela via administrativa, sem afastar, por óbvio, a via judicial, haja vista não se tratar de procedimento obrigatório.
Deveras, a partilha extrajudicial é instituto crescente e cada vez mais consagrado no direito comparado:
O advento do novo Código de Processo Civil trouxe consigo a concretização de importantes mecanismos de pacificação, inclusive em relação às serventias extrajudiciais, enfatizando a desjudicialização da contenda.
Com relação especificamente ao inventário extrajudicial, o Código cristalizou o tema sem exauri-lo, definindo a escritura pública como o meio formal adequado ao seu processamento, equiparando-a "à sentença judicial quanto à sua eficácia executiva" (NEVES, Daniel Amorim Assumpção. Novo Código de Processo Civil Comentado. Salvador: Juspodivm, 2016, p. 1025).
4. A dicção do art. 610 do CPC⁄2015 (art. 982 do CPC⁄73)é a seguinte:
Em relação ao contexto da norma, ainda quando da entrada em vigor da Lei n. 11.441⁄2007, pontuou Zeno Veloso que:
De fato, deve-se ter em mente que o norte interpretativo de todos os diplomas citados foi o de fomentar a utilização dos procedimentos com reflexos na ordem social, econômica e jurídica, diante das "reduções de burocracias e de formalidades para os atos de transmissão hereditária, bem como a celeridade, na linha da tendência atual de desjudicialização das contendas e pleitos" (TARTUCE, Flávio. Direito Civil: direito das sucessões, Vol. 6, Rio de Janeiro: Forense, 2018, p. 589).
Ademais, na linha do art. 5º da LINDB e dos arts. 3º, § 2º, 4º e 8º do novo CPC, os fins sociais e as exigências do bem comum em relação à norma autorizativa de inventário extrajudicial são a redução de formalidades e burocracias, com o incremento do maior número de procedimentos e de solução de controvérsias por meios alternativos ao aparato estatal.
Nesse contexto, havendo a morte e estando todos os herdeiros e interessados, maiores e capazes, de pleno e comum acordo quanto à destinação e partilha dos bens, não haverá necessidade de judicialização do inventário, podendo a partilha ser definida e formalizada conforme a livre vontade das partes no âmbito extrajudicial.
Foi autorizada, assim, a via extrajudicial do inventário mediante a lavratura de escritura pública, cujo pressuposto-base é a ausência de litigiosidade e que os envolvidos sejam capazes e estejam de acordo com a vontade manifestada pelo testador.
No entanto – e aqui reside a polêmica – a redação do dispositivo deixa margem à dúvida, que, no limite, pode inviabilizar o processamento do inventário extrajudicial quando há disposição de última vontade do de cujus. Penso que o só fato de existir testamento não pode ser impeditivo para que o inventário siga pela via administrativa.
Data venia, não parece razoável obstar a realização do inventário e da partilha por escritura pública quando há registro judicial do testamento (já que haverá definição precisa dos seus termos) ou autorização do juízo sucessório (ao constatar que inexistem discussões incidentais que não possam ser dirimidas na via administrativa), sob pena de violação a princípios caros de justiça, como a efetividade da tutela jurisdicional e a razoável duração do processo.
Decorrente da própria técnica legislativa, o caput do dispositivo de lei deve ser tido como o responsável pela ideia central do artigo, cabendo aos parágrafos a definição dos seus desdobramentos, explicações, complementações, condições e exceções à cabeça do dispositivo.
Com efeito, "os parágrafos têm por finalidade explicar ou modificar a regra constante do artigo ao qual se submetem. Possuem função de escrita secundária e não devem estabelecer regra geral. As alíneas, incisos e itens devem ter apenas uma função esclarecedora ou enunciativa" (VENOSA, Sílvio de Salvo. Introdução ao estudo do direito: primeiras linhas. São Paulo: Atlas, 2006, p. 209).
Nessa ordem de ideias, o caput do art. 610 estabelece a regra: em havendo testamento ou interessado incapaz, o inventário se dará pela via judicial. Não obstante, conforme exceção à regra disposta no § 1º, o inventário e a partilha poderão ser feitos por escritura pública sempre que os herdeiros forem capazes e concordes e não façam nenhuma restrição, o que engloba, por óbvio, a situação em que exista testamento.
Ademais, o Código Civil autoriza expressamente, independentemente da existência de testamento, que, "se os herdeiros forem capazes, poderão fazer partilha amigável, por escritura pública, termo nos autos do inventário, ou escrito particular, homologado pelo juiz" (art. 2.015). Por outro lado, determina que "será sempre judicial a partilha, se os herdeiros divergirem, assim como se algum deles for incapaz" (art. 2.016). Bastará, nesses casos, a homologação judicial posterior do acordado, nos termos do art. 659 do CPC.
Aliás, importante destacar que, antes mesmo da Lei n. 11.441⁄2007, o notário já lavrava escrituras públicas de partilha amigável, ainda que houvesse testamento, desde que a escritura fosse submetida à homologação do juiz.
É o destaque da doutrina:
Assim, a mens legis que autorizou o inventário extrajudicial foi justamente a de desafogar o Judiciário, afastando a via judicial de processos nos quais não se necessita da chancela judicial, assegurando solução mais célere e efetiva em relação ao interesse das partes.
Realmente, "entre maiores e capazes que se acham em pleno acordo quanto ao modo de partilhar o acervo hereditário, nada recomenda ou justifica o recurso ao processo judicial e a submissão a seus custos, sua complexidade e sua inevitável demora. Por outro lado, a retirada do inventário da esfera judicial contribui para aliviar a justiça de uma sobrecarga significativa de processos. Essa sistemática, portanto, só merece aplausos" (THEODORO JÚNIOR, Humberto. Curso de direito processual civil, v. 2, Rio de Janeiro: Forense, 2018, p. 257).
Por óbvio, sempre será possível a discussão judicial de eventuais controvérsias a respeito da validade do testamento ou de alguma de suas cláusulas. Da mesma forma, "a existência de débitos do autor da herança, bem como de eventual direito de terceiros, não impedem a lavratura da escritura pública amigável de inventário e partilha. Contudo, ficam ressalvados esses eventuais direitos porque o sistema jurídico brasileiro não admite sejam realizados negócios jurídicos em fraude contra credores, que ficam sujeitos à anulação (CC 158), nem em fraude de execução, que são ineficazes relativamente à ação judicial pendente quando da alienação ou oneração do bem ( CPC, 792)" (NERY JR. Nelson. Comentários ao Código de Processo Civil. São Paulo: RT, 2015, p. 1.432).
Nessa esteira, "todo testamento, para o seu cumprimento, deve, antes de mais nada, ser registrado em juízo, ou seja, em processo judicial específico, regulado pelos arts. 1.225 a 1.129 do Código de Processo Civil de 1973 (arts. 735 a 737 do CPC de 2015)".
Deveras, o inventário extrajudicial com testamento exige o provimento judicial para o ato de abertura, registro e cumprimento de testamento. "Nesse ato de abertura e registro de testamento, que é judicial, possíveis vícios formais serão apreciados e o testamento somente será executado se atender os requisitos formais. Assim, de um modo ou de outro, o inventário extrajudicial somente poderá ser iniciado após o registro do testamento e da ordem de cumprimento em processo judicial específico" (FIGUEIREDO, Ivanildo. Inventário extrajudicial na sucessão testamentária: possibilidade, legalidade, alcance e eficácia. Revista Nacional de Direito de Família e Sucessões n. 8 - set.⁄out.⁄2015, pp. 97-98).
No mesmo sentido, é a lição de Cristiano Chaves:
De outra parte, o processamento do inventário extrajudicial sempre exigirá a assistência e o acompanhamento de advogado ou defensor público. Com efeito, não obstante o testamento, "o inventário extrajudicial exige a concordância de todos os interessados com os termos da partilha dos bens, os quais devem ser assistidos pelos seus advogados, garantia de segurança quanto ao conhecimento dos direitos e obrigações de cada um" (ARAÚJO, Luciano Vianna. Comentários ao Código de Processo Civil. Coord. Cassio Scarpinella Bueno. São Paulo: Saraiva, 2017, p. 178).
Em se tratando de direitos disponíveis, não há razão de ordem pública para proibir o inventário extrajudicial quando o testamento já tiver sido homologado judicialmente, até porque o herdeiro maior e capaz nem sequer é obrigado a receber o seu quinhão hereditário estipulado pelo testador.
Ainda porque, ao lavrar o testamento – ato solene por natureza –, o notário o faz com a observância de todas as suas formalidades, sendo efetivado na presença do testador e de duas testemunhas, discutido, lido, escrito e assinado no livro de notas, com a certeza e a segurança de assim representar a vontade manifestada pelo testador ( CC, art. 1.864), além do absoluto cuidado e elevado grau de segurança na qualificação do testador, na aferição da sua capacidade e do seu discernimento, na limitação do seu poder de disposição, com respeito, inclusive, à legítima dos herdeiros necessários ( CC, art. 1.857, § 1º).
A doutrina bem destaca a atuação do referido profissional:
5. Assim, de uma leitura sistemática do caput e do § 1º do art. 610, do CPC⁄2015, penso ser possível o inventário extrajudicial, ainda que exista testamento, se os interessados forem capazes e concordes e estiverem assistidos por advogado, desde que o testamento tenha sido previamente registrado judicialmente ou haja a expressa autorização do juízo competente .
Com efeito, penso que a só existência de testamento não pode servir de motivo para impedir que o inventário seja levado a efeito administrativamente. "Não existindo litígio ou conflito de interesses, sendo todas as partes maiores e capazes, nada mais justifica, pois, que tais questões continuem a ser levadas ao Poder Judiciário, que, na maioria desses casos, terá sua função limitada a mero papel homologatório, de chancelar aquilo que já foi decidido pela livre-vontade das partes" (FIGUEIREDO, Ivanildo. ob.cit., p. 90).
Ora, o processo deve ser um meio, e não um entrave, para a realização do direito. Se a via judicial é prescindível, não há razoabilidade em proibir, na ausência de conflito de interesses, que herdeiros, maiores e capazes, socorram-se da via administrativa para dar efetividade a um testamento já tido como válido pela Justiça.
Trata-se, aliás, do posicionamento amplamente aceito pela doutrina e pela jurisprudência, na dicção de diversos enunciados e provimentos das Corregedorias dos Tribunais. Confira-se:
– Enunciado n. 600 da VII Jornada de Direito Civil do CJF: "Após registrado judicialmente o testamento e sendo todos os interessados capazes e concordes com os seus termos, não havendo conflito de interesses, é possível que se faça o inventário extrajudicial."
– Enunciado n. 77 da I Jornada sobre Prevenção e Solução Extrajudicial de Litígios: "Havendo registro ou expressa autorização do juízo sucessório competente, nos autos do procedimento de abertura e cumprimento de testamento, sendo todos os interessados capazes e concordes, o inventário e partilha poderão ser feitos por escritura pública, mediante acordo dos interessados, como forma de pôr fim ao procedimento judicial."
– Enunciado n. 51 da I Jornada de Direito Processual Civil do CJF: "Havendo registro judicial ou autorização expressa do juízo sucessório competente, nos autos do procedimento de abertura, registro e cumprimento de testamento, sendo todos os interessados capazes e concordes, poderão ser feitos o inventário e a partilha por escritura pública."
– Enunciado n. 16 do IBDFAM: "Mesmo quando houver testamento, sendo todos os interessados capazes e concordes com os seus termos, não havendo conflito de interesses, é possível que se faça o inventário extrajudicial."
Ademais, já é a realidade adotada pelas Corregedorias dos Tribunais do país, que vêm autorizando o inventário extrajudicial, ainda que presente disposição de última vontade (testamento), desde que os interessados sejam capazes e concordes, como soem, por exemplo, as determinações do TJSP (Provimento n. 37 da Corregedoria-Geral), do TJRJ (nova redação do art. 297, § 1º, da Consolidação Normativa da Corregedoria-Geral - Provimento n. 21⁄2017), do TJPB (art. 310 do Código Geral de Normas Judicial e Extrajudicial da Corregedoria-Geral do Tribunal de Justiça do Estado da Paraíba) e do TJPR (Ofício-circular 155⁄2018 da Corregedoria da Justiça do Paraná).
Também é o entendimento da doutrina especializada:
Não se pode olvidar que a partilha amigável feita pelos serviços notariais e registrais, além de aprimorar a justiça colaborativa, permite que o jurisdicionado e os advogados tenham "um ambiente com acessibilidade e segurança jurídica, além de baixo custo e celeridade" (SILVA, Érica Barbosa e. O novo CPC e o inventário extrajudicial - uma análise crítica. Revista Nacional de Direito de Família e Sucessões n. 10 - jan.⁄fev.⁄2016, p. 201).
6. No caso dos autos, quanto à parte disponível da herança, verifica-se que todos os herdeiros são maiores, com interesses harmoniosos e concordes, devidamente representados por advogado. De resto, não há maiores complexidades decorrentes do testamento, já que, "conforme disposto no testamento de fls. 101⁄103 do anexo, é importante destacar que a falecida legou a parte disponível de todos os bens que possui ou venha possuir para seu marido Samuel Cukierman, incluindo nesta parte, as ações do Centro de Correção Ocular Ltda., dos Serviços Médicos Oftalmológicos Ltda., e as ações do Pro-Oftalmo MicroCirurgia Ocular, e que a legítima de seus filhos Rogério e Mauro deverá recair na parte que a testadora possui no imóvel na Rua Marechal Taumaturgo nº 205 casa 1, Teresópolis" (fl. 39).
Tanto a Fazenda Estadual como o Ministério Público atuante junto ao Tribunal local concordaram com a medida.
Somado a isso, o testamento público, outorgado em 2⁄3⁄2010, lavrado no 18º Ofício de Notas da Comarca da Capital, folhas 199⁄200, Livro 76T, foi devidamente aberto, processado e concluído perante a 2ª Vara de Órfãos e Sucessões sob o n. 0132492-26.2015.8.19.0001.
Portanto, segundo penso, não há razão para indeferir o processamento do inventário extrajudicial.
7. Ante o exposto, dou provimento ao recurso especial para autorizar que o inventário dos recorrentes ocorra pela via extrajudicial.
É o voto.
Número Registro: 2019⁄0114609-4 | PROCESSO ELETRÔNICO | REsp 1.808.767 ⁄ RJ |
PAUTA: 15⁄10⁄2019 | JULGADO: 15⁄10⁄2019 |
RECORRENTE | : | SAMUEL CUKIERMAN |
RECORRENTE | : | MAURO CUKIERMAN |
RECORRENTE | : | ROGERIO CUKIERMAN |
ADVOGADOS | : | SÉRGIO SENDER - RJ033267 |
MÔNICA SENDER - RJ055404 | ||
RECORRIDO | : | NÃO INDICADO |
Documento: 1876717 | Inteiro Teor do Acórdão | - DJe: 03/12/2019 |