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- 2º Grau
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Inteiro Teor
Superior Tribunal de Justiça Revista Eletrônica de Jurisprudência |
RELATOR | : | MINISTRO LUIS FELIPE SALOMÃO |
RECORRENTE | : | GERALDA SANTOS PASCON |
ADVOGADOS | : | JORGENEI DE OLIVEIRA AFFONSO DEVESA - SP062054 |
MARIA JOSÉ ROMA FERNANDES DEVESA - SP097661 | ||
RECORRIDO | : | BANCO DO BRASIL S⁄A |
ADVOGADOS | : | MARINA EMÍLIA BARUFFI VALENTE BAGGIO - SP109631 |
IZABEL CRISTINA RAMOS DE OLIVEIRA - SP107931 | ||
CAROLINA GOMES ESQUERDO E OUTRO (S) - SP331266 | ||
INTERES. | : | VIDRAÇARIA VIDROSOL DE PERUÍBE LTDA |
INTERES. | : | CELSO PASCON |
INTERES. | : | WANER DEZONTINI VIEGAS |
DIREITO CAMBIÁRIO E PROCESSUAL CIVIL. RECURSO ESPECIAL. REVELIA. EFEITOS RELATIVOS. AVAL. NECESSIDADE DE OUTORGA UXÓRIA OU MARITAL. DISPOSIÇÃO RESTRITA AOS TÍTULOS DE CRÉDITO INOMINADOS OU ATÍPICOS. ART. 1.647, III, DO CC⁄2002. INTERPRETAÇÃO QUE DEMANDA OBSERVÂNCIA À RESSALVA EXPRESSA DO ART. 903 DO CC E AO DISPOSTO NA LUG ACERCA DO AVAL. REVISÃO DO ENTENDIMENTO DO COLEGIADO. COGITAÇÃO DE APLICAÇÃO DA REGRA NOVA PARA AVAL DADO ANTES DA VIGÊNCIA DO NOVO CC. MANIFESTA INVIABILIDADE.
1. Os efeitos da revelia - presunção de veracidade dos fatos alegados pelo autor - são relativos e não conduzem, necessariamente, ao julgamento de procedência dos pedidos, devendo o juiz atentar-se para os elementos probatórios presentes nos autos, para formação de sua convicção.
2. Diversamente do contrato acessório de fiança, o aval é ato cambiário unilateral, que propicia a salutar circulação do crédito, ao instituir, dentro da celeridade necessária às operações a envolver títulos de crédito, obrigação autônoma ao avalista, em benefício da negociabilidade da cártula. Por isso, o aval "considera-se como resultante da simples assinatura" do avalista no anverso do título (art. 31 da LUG), devendo corresponder a ato incondicional, não podendo sua eficácia ficar subordinada a evento futuro e incerto, porque dificultaria a circulação do título de crédito, que é a sua função precípua.
3. É imprescindível proceder-se à interpretação sistemática para a correta compreensão do art. 1.647, III, do CC⁄2002, de modo a harmonizar os dispositivos do Diploma civilista. Nesse passo, coerente com o espírito do Código Civil, em se tratando da disciplina dos títulos de crédito, o art. 903 estabelece que "salvo disposição diversa em lei especial, regem-se os títulos de crédito pelo disposto neste Código".
4. No tocante aos títulos de crédito nominados, o Código Civil deve ter uma aplicação apenas subsidiária, respeitando-se as disposições especiais, pois o objetivo básico da regulamentação dos títulos de crédito, no novel Diploma civilista, foi permitir a criação dos denominados títulos atípicos ou inominados, com a preocupação constante de diferençar os títulos atípicos dos títulos de crédito tradicionais, dando aos primeiros menos vantagens.
5. A necessidade de outorga conjugal para o aval em títulos inominados - de livre criação - tem razão de ser no fato de que alguns deles não asseguram nem mesmo direitos creditícios, a par de que a possibilidade de circulação é, evidentemente, deveras mitigada. A negociabilidade dos títulos de crédito é decorrência do regime jurídico-cambial, que estabelece regras que dão à pessoa para quem o crédito é transferido maiores garantias do que as do regime civil.
6. As normas das leis especiais que regem os títulos de crédito nominados, v.g., letra de câmbio, nota promissória, cheque, duplicata, cédulas e notas de crédito, continuam vigentes e se aplicam quando dispuserem diversamente do Código Civil de 2002, por força do art. 903 do Diploma civilista. Com efeito, com o advento do Diploma civilista, passou a existir uma dualidade de regramento legal: os títulos de crédito típicos ou nominados continuam a ser disciplinados pelas leis especiais de regência, enquanto os títulos atípicos ou inominados subordinam-se às normas do novo Código, desde que se enquadrem na definição de título de crédito constante no art. 887 do Código Civil.
7. Recurso especial não provido.
Vistos, relatados e discutidos os autos em que são partes as acima indicadas, acordam os Ministros da Quarta Turma do Superior Tribunal de Justiça, por unanimidade, negar provimento ao recurso especial, nos termos do voto do Sr. Ministro Relator.
Os Srs. Ministros Maria Isabel Gallotti (Presidente), Antonio Carlos Ferreira e Marco Buzzi votaram com o Sr. Ministro Relator.
Ausente, justificadamente, o Sr. Ministro Raul Araújo.
Ministro Luis Felipe Salomão
Relator
RECORRENTE | : | GERALDA SANTOS PASCON |
ADVOGADOS | : | JORGENEI DE OLIVEIRA AFFONSO DEVESA - SP062054 |
MARIA JOSÉ ROMA FERNANDES DEVESA - SP097661 | ||
RECORRIDO | : | BANCO DO BRASIL S⁄A |
ADVOGADOS | : | MARINA EMÍLIA BARUFFI VALENTE BAGGIO - SP109631 |
IZABEL CRISTINA RAMOS DE OLIVEIRA - SP107931 | ||
CAROLINA GOMES ESQUERDO E OUTRO (S) - SP331266 | ||
INTERES. | : | VIDRAÇARIA VIDROSOL DE PERUÍBE LTDA |
INTERES. | : | CELSO PASCON |
INTERES. | : | WANER DEZONTINI VIEGAS |
O SENHOR MINISTRO LUIS FELIPE SALOMÃO (Relator):
1. Geralda Santos Pascon opôs embargos de terceiros em face do Banco do Brasil S.A., nos autos da ação de execução movida pelo embargado em face da Vidraçaria Vidrosol de Peruíbe Ltda, Celso Pascon e Wagner Dezontini Viegas, embasada em cédula de crédito comercial avalizada por seu marido Celso Pascon, suscitando que não há outorga uxória.
Assevera que, a teor do disposto no art. 1.647, III, do CC⁄2002, nenhum dos cônjuges pode, sem autorização do outro, exceto no regime de separação absoluta, prestar aval.
Afirma que o art. 145 do CC⁄2002 preconiza que é nulo o ato jurídico, entre outros casos, quando for preterida alguma solenidade que a lei considere essencial para a sua validade, e que, como a hipoteca é modalidade de garantia real de dívida, o bem não poderia ser dado em garantia, porque o devedor (seu marido) não tinha a livre disposição da coisa, já que necessitava da autorização da mulher.
O Juízo da 1ª vara Cível da Comarca de Peruíbe julgou parcialmente procedende o pedido dos embargos de terceiro, apenas para reservar à embargante a metade do valor do bem penhorado, em caso de alienação, rejeitando os pleitos de cancelamento da penhora e de reconhecimento de nulidade do aval.
Interpôs o Banco do Brasil apelação, e a embargante recurso adesivo, ambos para o Tribunal de Justiça de São Paulo, que negou provimento aos recursos.
A decisão tem a seguinte ementa:
Sobreveio recurso especial da embargante, com fundamento no artigo 105, inciso III, alíneas "a" e "c", da Constituição Federal, sustentando divergência jurisprudencial e violação aos arts. 319 do CPC⁄1973; 235 do CC⁄1916 e 1.647, III, do CC⁄2002.
Sustenta que, por ter-se valido do meio processual adequado para a decretação da invalidade da garantia, a parte demandada foi revel por ter oferecido intempestivamente a contestação, por isso não poderia o Juízo julgar improcedente a demanda, para reconhecer hígido o aval.
Argumenta que não procede a fundamentação do acórdão recorrido, no sentido de que a revelia não induz de imediato a procedência dos pedidos iniciais e de que, na ocasião em que seu marido deu aval, somente era exigível anuência do cônjuge, em caso de fiança.
Afirma que o aval e a fiança são institutos de garantia pessoal de dívida, e a diferença é que o aval é firmado em títulos de crédito e a fiança em contratos em geral. Por isso, mesmo na vigência do CC⁄1916, a ausência de outorga uxória do cônjuge acarretava a nulidade da garantia firmada.
Pondera, invocando precedente de outro Tribunal estadual, que a necessidade de outorga do cônjuge para a constituição do aval é matéria de natureza social, que envolve interesse geral e, por isso, submete-se à lei nova, sendo irrelevante a data do casamento.
Obtempera que, por se tratar de matéria de ordem social, submete-se ao CC⁄2002, e que não acompanhado da outorga uxória do cônjuge, é nulo o aval, não podendo gerar nenhum efeito.
Em contrarrazões, afirma o recorrido que: a) incidem os óbices das súmulas 5 e 7 do STJ ao conhecimento do recurso especial; b) o fato de ter apresentado defesa intempestivamente, não induz à procedência dos pedidos iniciais; c) o aval tem validade mesmo sem autorização do cônjuge; d) o que o art. 1.647, III, do CC⁄2002 está a afirmar, dentro do inseparável contexto de sua localização no Código, é que o cônjuge que não participou do aval não estará prejudicado em sua relação patrimonial com o outro consorte; e) não há como se admitir nulo ou mesmo anulável o aval prestado por um dos cônjuges sem a outorga uxória; f) a melhor interpretação é a que à formação e validação do aval não é indispensável a outorga do cônjuge que do ato não participe diretamente; g) a Convenção de Genébra, por força do Decreto n. 57.663⁄1966 deve ser respeitada em todos os seus termos; h) consoante o enunciado n. 114 da I Jornada de Direito Civil do CJF, o aval não pode ser anulado por falta de vênia conjugal, de modo que o inc. III do art. 1.647 do CC⁄2002 apenas caracteriza a inoponibilidade do título ao cônjuge que não assentiu; i) exigir anuência do cônjuge para a outorga do aval é afrontar a lei Uniforme de Genébra e descaracterizar o instituto; j) a celeridade indispensável à circulação dos títulos de crédito é incompatível com a exigência de outorga uxória, pois não se pode esperar que, na celebração de um contrato corriqueiro, lastreado em cambial ou duplicata, seja necessário para a obtenção de um aval, ir à busca do cônjuge e da certidão do seu casamento, que determina o regime de bens.
Dei provimento ao Agravo em Recurso Especial n. 636.762⁄SP para determinar sua conversão no presente recurso especial.
É o relatório.
RELATOR | : | MINISTRO LUIS FELIPE SALOMÃO |
RECORRENTE | : | GERALDA SANTOS PASCON |
ADVOGADOS | : | JORGENEI DE OLIVEIRA AFFONSO DEVESA - SP062054 |
MARIA JOSÉ ROMA FERNANDES DEVESA - SP097661 | ||
RECORRIDO | : | BANCO DO BRASIL S⁄A |
ADVOGADOS | : | MARINA EMÍLIA BARUFFI VALENTE BAGGIO - SP109631 |
IZABEL CRISTINA RAMOS DE OLIVEIRA - SP107931 | ||
CAROLINA GOMES ESQUERDO E OUTRO (S) - SP331266 | ||
INTERES. | : | VIDRAÇARIA VIDROSOL DE PERUÍBE LTDA |
INTERES. | : | CELSO PASCON |
INTERES. | : | WANER DEZONTINI VIEGAS |
DIREITO CAMBIÁRIO E PROCESSUAL CIVIL. RECURSO ESPECIAL. REVELIA. EFEITOS RELATIVOS. AVAL. NECESSIDADE DE OUTORGA UXÓRIA OU MARITAL. DISPOSIÇÃO RESTRITA AOS TÍTULOS DE CRÉDITO INOMINADOS OU ATÍPICOS. ART. 1.647, III, DO CC⁄2002. INTERPRETAÇÃO QUE DEMANDA OBSERVÂNCIA À RESSALVA EXPRESSA DO ART. 903 DO CC E AO DISPOSTO NA LUG ACERCA DO AVAL. REVISÃO DO ENTENDIMENTO DO COLEGIADO. COGITAÇÃO DE APLICAÇÃO DA REGRA NOVA PARA AVAL DADO ANTES DA VIGÊNCIA DO NOVO CC. MANIFESTA INVIABILIDADE.
1. Os efeitos da revelia - presunção de veracidade dos fatos alegados pelo autor - são relativos e não conduzem, necessariamente, ao julgamento de procedência dos pedidos, devendo o juiz atentar-se para os elementos probatórios presentes nos autos, para formação de sua convicção.
2. Diversamente do contrato acessório de fiança, o aval é ato cambiário unilateral, que propicia a salutar circulação do crédito, ao instituir, dentro da celeridade necessária às operações a envolver títulos de crédito, obrigação autônoma ao avalista, em benefício da negociabilidade da cártula. Por isso, o aval "considera-se como resultante da simples assinatura" do avalista no anverso do título (art. 31 da LUG), devendo corresponder a ato incondicional, não podendo sua eficácia ficar subordinada a evento futuro e incerto, porque dificultaria a circulação do título de crédito, que é a sua função precípua.
3. É imprescindível proceder-se à interpretação sistemática para a correta compreensão do art. 1.647, III, do CC⁄2002, de modo a harmonizar os dispositivos do Diploma civilista. Nesse passo, coerente com o espírito do Código Civil, em se tratando da disciplina dos títulos de crédito, o art. 903 estabelece que "salvo disposição diversa em lei especial, regem-se os títulos de crédito pelo disposto neste Código".
4. No tocante aos títulos de crédito nominados, o Código Civil deve ter uma aplicação apenas subsidiária, respeitando-se as disposições especiais, pois o objetivo básico da regulamentação dos títulos de crédito, no novel Diploma civilista, foi permitir a criação dos denominados títulos atípicos ou inominados, com a preocupação constante de diferençar os títulos atípicos dos títulos de crédito tradicionais, dando aos primeiros menos vantagens.
5. A necessidade de outorga conjugal para o aval em títulos inominados - de livre criação - tem razão de ser no fato de que alguns deles não asseguram nem mesmo direitos creditícios, a par de que a possibilidade de circulação é, evidentemente, deveras mitigada. A negociabilidade dos títulos de crédito é decorrência do regime jurídico-cambial, que estabelece regras que dão à pessoa para quem o crédito é transferido maiores garantias do que as do regime civil.
6. As normas das leis especiais que regem os títulos de crédito nominados, v.g., letra de câmbio, nota promissória, cheque, duplicata, cédulas e notas de crédito, continuam vigentes e se aplicam quando dispuserem diversamente do Código Civil de 2002, por força do art. 903 do Diploma civilista. Com efeito, com o advento do Diploma civilista, passou a existir uma dualidade de regramento legal: os títulos de crédito típicos ou nominados continuam a ser disciplinados pelas leis especiais de regência, enquanto os títulos atípicos ou inominados subordinam-se às normas do novo Código, desde que se enquadrem na definição de título de crédito constante no art. 887 do Código Civil.
7. Recurso especial não provido.
O SENHOR MINISTRO LUIS FELIPE SALOMÃO (Relator):
2. No tocante à tese acerca da violação ao art. 319 do CPC⁄1973, "segundo a pacífica jurisprudência deste Superior Tribunal de Justiça, os efeitos da revelia (presunção de veracidade dos fatos alegados pelo autor na hipótese em que o réu, citado para apresentar contestação, queda-se inerte) são relativos e não conduzem necessariamente ao julgamento de procedência dos pedidos, devendo o juiz atentar-se para os elementos probatórios presentes nos autos, formando livremente sua convicção, para, só então, decidir pela procedência ou improcedência do pedido" . (AgRg nos EDcl no REsp 1370373⁄DF, Rel. Ministro MARCO BUZZI, QUARTA TURMA, julgado em 04⁄02⁄2016, DJe 17⁄02⁄2016)
3. A principal questão controvertida consiste em saber, em se tratando de cédula de crédito comercial, a teor do art. 1.647, III, do CC⁄2002, se é necessário ao aval a outorga conjugal.
Dispõe o referido preceito legal:
A meu juízo, tenho que a questão não vem recebendo tratamento adequado no âmbito desta Corte Superior.
De fato, para logo e por lealdade intelectual, observo que, na mesma linha da tese recursal, consoante alguns julgados do STJ, sobretudo em sede de agravo interno, mesmo em se tratando de títulos de crédito nominados, o aval prestado sem a outorga do cônjuge vem sendo considerado inválido:
Nota-se, todavia, que não há precedente que examine a questão detidamente, notadamente à luz das disposições do art. 903 do CC⁄2002, da LUG, das ponderações doutrinárias, e mesmo de uma interpretação histórica das disposições acerca de títulos de crédito trazidas pelo novel Diploma civilista.
Em pesquisa à jurisprudência desta Corte, constata-se que os julgados deste Colegiado apreciando o tema foram todos em sede de agravo interno, sem enfrentamento dos pontos relevantes suscitados na peça do recorrido, de modo a convidar este Colegiado ao reexame do alcance e conteúdo do disposto no art. 1.647 do CC⁄2002.
4. Com efeito, diversamente do contrato acessório de fiança, o aval é apenas ato cambiário unilateral, que fomenta a extremamente salutar circulação do crédito, ao instituir, dentro da celeridade necessária às operações a envolver títulos de crédito, obrigação autônoma ao avalista, conferindo maior segurança ao credor cambial, em benefício da negociabilidade da cártula.
O aval, como qualquer obrigação cambiária, deve corresponder a ato incondicional, não podendo sua eficácia ficar subordinada a evento futuro e incerto, porque dificultaria a circulação do título de crédito, que é a sua função precípua. Ademais, o aval só pode ser lançado no título, não se admitindo por documento em separado, porque o Estado brasileiro não adotou a reserva do art. 4º do Anexo II da LUG. Registra-se, ainda, que o aval pode ser prestado por terceiro, estranho à relação cartular, ou por pessoa que nela já figure com obrigação cambiária distinta, mas só pode ser lançado no título de crédito, em razão do princípio da literalidade ( LUG, art. 31, al. 1ª, LC, art. 30). (ROSA JÚNIOR, Luiz Emygdio. Títulos de crédito. Rio de janeiro: Renovar, 2007, p. 280, 282, 283 - olhar a p. 287 e 289)
Ora, como é cediço, o título de crédito nasce para circular e não para ficar restrito à relação entre o devedor principal e seu credor originário. Daí a preocupação do legislador em proteger o terceiro adquirente de boa-fé para facilitar a circulação do título. (REsp 1.231.856⁄PR, Rel. Ministro LUIS FELIPE SALOMÃO, QUARTA TURMA, julgado em 4⁄2⁄2016, DJe 8⁄3⁄2016)
Nesse diapasão, a doutrina anota que o elemento diferencial presente nos títulos de crédito "deve manifestar-se na proteção do cessionário do direito, terceiro de boa-fé, diante de possíveis vícios existentes nas fases de criação, emissão e circulação do documento cambial". É que "[...] o título de crédito deve ter, em princípio, como finalidade precípua, a sua circulação, isto é, o predicado ou atributo da negociabilidade", facilitando ao credor que detém o título "encontrar terceiros interessados em antecipar-lhe o valor da obrigação, em troca da titularidade do crédito"; "a utilidade do título de crédito reside, precisamente, nesse atributo da negociabilidade e da antecipação do seu valor. Para que o título de crédito possa ser colocado em circulação, para sua aceitação por terceiros, é necessário seja dotado de plena" certeza e segurança jurídica ". (COELHO, Fábio Ulhoa (coord.). Tratado de direito comercial: títulos de crédito, direito bancário, agronegócio e processo empresarial. São Paulo: Saraiva, 2015, p. 20-24)
Luiz Emygdio F. da Rosa Junior, à luz da realidade de mercado, anota que a função do aval é reforçar as garantias de pagamento do título de crédito em seu vencimento, facilitando sua circulação, sendo um dos mais importantes e utilizados institutos do direito cambiário, mormente nas operações bancárias. A"importância do aval decorre da sua função de reforço das garantias já existentes do título", facilitando sua circulação pela maior segurança que confere ao portador no que toca ao seu pagamento. Por isso,"embora o aval não seja declaração cambiária necessária, dificilmente encontrar-se-á título de crédito sem aval".(ROSA JÚNIOR, Luiz Emygdio F. Títulos de crédito. Rio de janeiro: Renovar, 2007, p. 280, 282, 283 - olhar a p. 287 e 289)
Com efeito, pela própria natureza, simplicidade e finalidade do aval é que a ampla maioria da doutrina tem tecido as mais ácidas críticas à inovação trazida pelo CC⁄2002, inclusive anotando, em interpretação sistemática do Diploma civilista, a aparente contradição interna, visto que, a teor do art. 978 do CC⁄2002, o empresário casado pode, sem necessidade de outorga conjugal, qualquer que seja o regime de bens, alienar os imóveis que integrem o patrimônio da empresa ou gravá-los de ônus real (TOMAZETE, Marlon. Curso de direito empresarial: títulos de crédito. 6 ed. São Paulo: Atlas, 2015. p. 126-129)
A princípio, o aval exigirá apenas a declaração de vontade do avalista, que poderá ser acompanhada da indicação do avalizado ou de qualquer expressão que especifique a intenção das partes. A LUG nada mais menciona no que tange às formalidades do aval. Do mesmo modo, o Decreto nº 2.044⁄1908 e toda a legislação estrangeira sobre o assunto. (TOMAZETE, Marlon. Curso de direito empresarial: títulos de crédito. 6 ed. São Paulo: Atlas, 2015. p. 126)
Nesse sentido, o art. 14 do Decreto n. 2.044⁄1908 estabelece que o pagamento de uma letra de câmbio, independente do aceite e do endosso, pode ser garantido por aval. Para a validade do aval, é suficiente a simples assinatura de próprio punho do avalista ou do mandatário especial, no verso ou no anverso da letra. E o art. 15 do mesmo Diploma dispõe que o avalista é equiparado àquele cujo nome indicar; na falta de indicação, àquele abaixo de cuja assinatura lançar a sua; fora destes casos, ao aceitaste e, não estando aceita a letra, ao sacador.
Os arts. 30 e 31 da LUG, por seu turno, dispõem:
Dessarte, o aval é instrumento exclusivamente de direito cambiário, não subsistindo fora do título de crédito ou cambiariforme, ou, ainda, em folha anexa a este (art. 31 da Lei Uniforme). Inexistindo a cambiariedade, o aval não pode prevalecer, subsistindo a dívida apenas em relação ao codevedor principal.(REsp 707.979⁄MG, Rel. Ministro LUIS FELIPE SALOMÃO, QUARTA TURMA, julgado em 17⁄06⁄2010, DJe 29⁄06⁄2010)
Com efeito, segundo entendo, para a correta compreensão do art. 1.647, III, do CC⁄2002, que embasa o recurso especial, é imprescindível proceder-se a uma interpretação sistemática, de modo a harmonizar os dispositivos do diploma civilista.
Na verdade, coerente com o espírito do CC, em se tratando da disciplina dos títulos de crédito, o art. 903 estabelece que"salvo disposição diversa em lei especial, regem-se os títulos de crédito pelo disposto neste Código".
Nessa toada, o Enunciado n. 132 da I Jornada de Direito Civil do CJF tem a seguinte justificativa:
5. Em relação ao aval em folha anexa, consiste em mero alongamento do título. E atendendo aos reclamos, notadamente do Estado francês, a LUG permitiu aos Estados aderentes fosse feita reserva específica acerca do aval - o que não é o caso do Brasil -, para que este também pudesse ser feito em folha avulsa.
Ora, se para mera formalidade (pormenor) - que em nada ou pouco afeta a celeridade, no tocante à circulação dos títulos - foi necessário, após notório e acalorado debate, estabelecer previsão específica no anexo II da Convenção, por óbvio, segundo entendo, não é mesmo possível considerar que a imposição de outorga uxória fosse compatível com a LUG.
Note-se o disposto no anexo II:
A necessidade de outorga uxória para contrato de fiança já estava presente no Código Civil de 1916, todavia o aval é ato de extrema simplicidade, consistindo em assinatura no anverso do título de crédito ou assinatura com menção ao aval no verso do título. Por isso, a exigência de outorga uxória para a prática desse ato prejudica sua simplicidade e, consequentemente, é entrave para a rapidez e a segurança da circulação cambiária, pois o credor do título de crédito, ao contrário do que normalmente se sucede na fiança, no mais das vezes, não conhece a vida pessoal do avalista. (SILVA, Regina Beatriz Tavarez da (Coord.). Código civil comentado. 9 ed. São Paulo: Saraiva, 2013, p. 1.609).
No ponto, é bastante elucidativa a lição doutrinária do magistrado e catedrático de Direito Comercial, Manoel Justino Bezerra Filho, observando que o anexo I, ao qual integram os dispositivos da LUG que disciplinam o aval, é de observância obrigatória pela nação aderente - e, ressalto, não há reservas, no anexo II, que permitam ao Estado brasileiro, sem que denuncie a Convenção, estabelecer, no tocante ao aval dado nos títulos próprios, a exigência de outorga conjugal:
A doutrina amplamente majoritária propugna que, no tocante aos títulos de crédito nominados, o Código Civil deve ter uma aplicação apenas subsidiária, respeitando-se as disposições especiais:
Menciona-se o seguinte precedente deste Colegiado:
6. Ademais, por um lado, o art. 5º da Lei n. 6.840⁄1980 estabelece aplicam-se à Cédula de Crédito Comercial e à Nota de Crédito Comercial as normas do Decreto-Lei nº 413, de 9 de janeiro 1969, inclusive quanto aos modelos anexos àquele diploma, respeitadas, em cada caso, a respectiva denominação e as disposições desta Lei. Por outro lado, o art. 52 do Decreto-Lei n. 413⁄1969, claramente remetendo à LUG, estabelece que se aplicam à cédula de crédito industrial e à nota de crédito industrial, no que forem cabíveis, as normas do direito cambial, dispensado, porém, o protesto para garantir direito de regresso contra endossantes e avalistas.
Como é cediço, a própria Lei do Cheque foi editada com o escopo de amoldar a legislação interna aos compromissos firmados pelo Estado brasileiro, no âmbito internacional, na Convenção Internacional de Genébra.
Corroborando esse entendimento, Wille Duarte Costa apresenta profícuo estudo, anotando que Mauro Brandão Lopes, membro da Comissão Especial que redigiu o anteprojeto do novo Código Civil, asseverou que foi objetivo básico da regulamentação dos títulos de crédito, no novel Diploma, permitir a criação dos denominados títulos atípicos ou inominados. A preocupação constante foi a de diferençar os títulos atípicos dos títulos de crédito tradicionais, dando aos primeiros menos vantagens, acrescentando que "não são os atípicos passíveis de protesto, nem têm ação executiva" :
Ora, "a doutrina nacional e alienígena sempre debateu a matéria quanto à necessidade e utilidade da inserção no direito positivo de uma Teoria geral dos Títulos de Crédito. O CCB de 2002, ao agasalhar a mencionada teoria, teve como objetivo restringir a sua aplicação aos títulos atípicos ou inominados, ou seja, títulos de crédito criados pela prática sem lei específica, mas que se subordinam a alguns dos princípios reguladores dos títulos típicos ou nominados. Assim, o mencionado Código adotou o princípio da liberdade de criação e emissão de títulos atípicos ou inominados". (ROSA JÚNIOR, Luiz Emygdio. Títulos de crédito. Rio de janeiro: Renovar, 2007, p. 35).
Com efeito, segundo meu ponto de vista, a interpretação mais coerente é que, ao tomar posição acerca da possibilidade de livre criação de títulos inominados, o legislador demonstrou a preocupação de diferenciar os títulos atípicos dos títulos de crédito tradicionais, "dando aos primeiros menos vantagens".
No entanto, apesar das críticas doutrinárias, em linha de princípio, a necessidade de outorga conjugal para o aval em títulos inominados é de certo modo defensável, pois alguns deles não asseguram nem mesmo direitos creditícios - a se distanciar da obrigação típica do avalista e se aproximar da fiança -, a par de que têm a possibilidade de circulação deveras mitigada, já que "nem todos os documentos representativos de obrigação, contudo, são descontáveis pelos bancos".
É que documentos sujeitos ao regime civil de circulação não despertam o mesmo interesse de instituições financeiras, porque elas ficam em situação mais vulnerável quanto ao recebimento do crédito. A negociabilidade dos títulos de crédito é decorrência do regime jurídico-cambial, que estabelece regras que dão à pessoa para quem o crédito é transferido maiores garantias do que as do regime civil:
Assim, penso que as normas das leis especiais que regem os títulos de crédito nominados, v.g., letra de câmbio, nota promissória, cheque e duplicata, continuam vigentes e se aplicam quando dispuserem diversamente do CCB de 2002, por força do art. 903 do Diploma civilista.
Em outras palavras, com o advento do CC de 2002, passou a existir uma dualidade de regramento legal: os títulos de crédito típicos ou nominados continuam a ser disciplinados pelas leis especiais de regência, enquanto os títulos atípicos ou inominados subordinam-se às normas do novo Código, desde que se enquadrem na definição de título de crédito constante no art. 887 do CC. (ROSA JÚNIOR, Luiz Emygdio. Títulos de crédito. Rio de janeiro: Renovar, 2007, p. 35)
Dessarte, o regramento oferecido pelo legislador civilista restringe-se aos títulos inominados e aos que forem criados após a entrada em vigor do Código Civil, se outro não lhes for determinado pela lei especial que os disciplinar.
Em reforço a esse atendimento de que o CC buscou disciplinar o aval apenas no tocante aos títulos de crédito de livre criação (inominados), cumpre ressaltar que, quanto aos únicos títulos (nominados) criados após o CC⁄2002 - Certificado de Deposito Agropecuario – CDA, Warrant Agropecuario – WA, Certificado de Direitos Creditórios do Agronegócio – CDCA, Letra de Credito do Agronegocio – LCA e Certificado de Recebiveis do Agronegocio – CRA -, a Lei n. 11.076⁄2004, em clara remissão à LUG (já que o CC não prevê o protesto necessário), estabeleceu, nos arts. 2º e 44, in verbis:
7. Diante desse panorama, penso que o art. 1.647, III, do CC⁄2002 é impertinente para a solução da presente demanda, de modo que, ainda que por fundamento diverso, não é cabível cogitar-se de suposta violação.
Ademais, em sendo o aval um direito creditício autônomo, em que pese haver dissídio notório - a própria recorrente invoca precedente de outra Corte estadual a admitir a retroação da norma que impõe a outorga uxória, no tocante a aval -, entendo que, sob pena de violação ao ato jurídico perfeito, a norma não pode retroagir para atingir pretensão de direito material concernente à relação de direito material anterior à sua vigência (RE 205999, Relator (a): Min. MOREIRA ALVES, Primeira Turma, julgado em 16⁄11⁄1999, DJ 3-3-2000 PP-00089 EMENT VOL-01981-05 PP-00991), sob pena de violação também ao próprio direito fundamental de propriedade do credor cambial.
8. Diante do exposto, nego provimento ao recurso especial e mantenho o acórdão, ainda que por fundamento diverso.
É como voto.
Número Registro: 2014⁄0316484-3 | PROCESSO ELETRÔNICO | REsp 1.633.399 ⁄ SP |
EM MESA | JULGADO: 10⁄11⁄2016 |
RECORRENTE | : | GERALDA SANTOS PASCON |
ADVOGADOS | : | JORGENEI DE OLIVEIRA AFFONSO DEVESA - SP062054 |
MARIA JOSÉ ROMA FERNANDES DEVESA - SP097661 | ||
RECORRIDO | : | BANCO DO BRASIL S⁄A |
ADVOGADOS | : | MARINA EMÍLIA BARUFFI VALENTE BAGGIO - SP109631 |
IZABEL CRISTINA RAMOS DE OLIVEIRA - SP107931 | ||
CAROLINA GOMES ESQUERDO E OUTRO (S) - SP331266 | ||
INTERES. | : | VIDRAÇARIA VIDROSOL DE PERUÍBE LTDA |
INTERES. | : | CELSO PASCON |
INTERES. | : | WANER DEZONTINI VIEGAS |
Documento: 1554227 | Inteiro Teor do Acórdão | - DJe: 01/12/2016 |