9 de Agosto de 2022
- 2º Grau
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Detalhes da Jurisprudência
Processo
Órgão Julgador
Publicação
Julgamento
Relator
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Inteiro Teor
Superior Tribunal de Justiça Revista Eletrônica de Jurisprudência |
RELATOR | : | MINISTRO RAUL ARAÚJO |
RECORRENTE | : | YMPACTUS COMERCIAL LTDA |
ADVOGADOS | : | DANNY FABRÍCIO CABRAL GOMES |
HORST VILMAR FUCHS E OUTRO (S) |
RELATOR | : | MINISTRO RAUL ARAÚJO |
RECORRENTE | : | YMPACTUS COMERCIAL LTDA |
ADVOGADOS | : | DANNY FABRÍCIO CABRAL GOMES |
HORST VILMAR FUCHS E OUTRO (S) | ||
RECORRIDO | : | MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DO ESPÍRITO SANTO |
O EXMO. SR. MINISTRO RAUL ARAÚJO: Cuida-se de recurso especial interposto por YMPACTUS COMERCIAL LTDA, com fundamento nas alíneas a e c do permissivo constitucional, em face de acórdão do eg. Tribunal de Justiça do Estado do Espírito Santo - TJ-ES, assim ementado:
Opostos embargos de declaração por Ympactus Comercial S⁄A, foram acolhidos tão somente para correção de erro na ementa do acórdão, de modo que onde se lê" Sentença reformada", deve ser lido" Sentença mantida "(fls. 48.125⁄48.153).
Aponta a recorrente, em suas razões, violação aos arts. 127, 165, 269, I, 284, 458, II e III, e 535, I e II, do Código de Processo Civil; aos arts. 47, 48, caput, 51, II, 52 e 53, II, da Lei 11.101⁄2005; ao art. 5º da LINDB; aos arts. 3º, 5º, caput, e LIV, 7º, X, 93, IX, e 170 da Constituição Federal de 1988, bem como dissídio jurisprudencial.
Sustenta não ter o Tribunal capixaba prestado a completa jurisdição, deixando de se manifestar fundamentadamente sobre os dispositivos legais elencados nos embargos de declaração, além de não se ter pronunciado sobre a pertinência dos documentos novos juntados, especialmente aquele fornecido pela Receita Federal, bem como sobre a impossibilidade de o juízo de primeiro grau, tendo negado a recuperação judicial, ingressar desde logo na análise do mérito. Aponta como paradigma o REsp 133.169⁄SP.
Afirma que, ao contrário do que entendeu o aresto recorrido, foram cumpridos todos os requisitos previstos no art. 48 da Lei 11.101⁄2005 para o deferimento do processamento do pedido de recuperação judicial. Além disso, guarnecem a petição inicial todos os documentos exigidos pelo art. 51 do mesmo Diploma Legal.
Assevera estar regularmente inscrita na Junta Comercial há mais de dois anos, com o exercício regular de suas atividades, conforme comprova o documento emitido pela Receita Federal, sendo que o fato de possuir baixo faturamento não lhe retira o direito de obter o benefício da recuperação judicial.
Sustenta que a interpretação extensiva e equivocada do art. 48 da Lei 11.101⁄2005 nega vigência ao art. 5º da LINDB e ao art. 3º da Constituição Federal de 1988.
Salienta que o pedido de recuperação judicial tem por objetivo atender não somente os interesses da sociedade recuperanda, mas principalmente os interesses dos empregados, dos credores e da sociedade em geral.
Diz ter a Corte local manipulado a doutrina que cita, pois os mestres Amador Paes de Almeida, Fábio Ulhoa Coelho e Manoel Justino Bezerra Filho têm entendimento favorável à ora recorrente, na forma como defendido no presente recurso especial. Sustenta, nessa linha, que as citações constantes do voto do Relator não demonstram o verdadeiro entendimento dos juristas por ele citados.
Assevera que já possuía, por ocasião do pedido de recuperação judicial, registro na Junta Comercial há cerca de quatro anos, de modo que jamais foi declarada inativa pela Receita Federal. Indica como paradigmas o REsp 1.193.115⁄MT e o AI XXXXX-78.2013-8-26-0000TJ⁄SP.
Afirma ter observado estritamente o disposto no art. 51, II, da Lei de Recuperações, juntando com a inicial todos os documentos exigidos pela Lei, razão pela qual o Julgador tem o dever de determinar o processamento do pedido de recuperação judicial, mormente diante da incidência do princípio da preservação da empresa. Cita diversas doutrinas que entende abonarem sua tese. Aponta como paradigmas o REsp 1.004.910⁄RJ; o AI XXXXX-67.2010.8.19.0000-TJ⁄RJ; o AI 612.654.4⁄6-00-TJ⁄SP e a AC XXXXX-TJ⁄ES.
Assinala que eventual baixa movimentação contábil em períodos específicos não pode inviabilizar o pedido de processamento de recuperação judicial.
Aduz, por outro lado, não ser possível na fase postulatória da recuperação judicial, antes mesmo da apresentação do plano, adiantar juízo de mérito acerca da viabilidade econômica da empresa, conforme fez a Corte estadual. Indica como paradigma a AC XXXXX - TJ⁄RS.
Argumenta a recorrente, ainda, que a Corte local impediu que"tivesse a proteção do Princípio da Preservação da Empresa...", previsto no art. 47 da Lei 11.101⁄2005. Ressalta que em nosso sistema jurídico não vige o instituto do Judge-Made Law, segundo o qual o juiz cria a Lei. Assim, não cabe ao juiz estender a exigência legal para criar exigências que a lei não traz. Considera que o julgamento dos autos foi absolutamente contra legem.
Assegura, ademais, ser comum em determinados nichos de atividade empresas demorarem meses e até mesmo ano para passarem a ter faturamento nos moldes tradicionais, sendo esperado, de todo modo, que, antes do pedido de recuperação judicial, a empresa apresente baixo faturamento.
Diz, de outra parte, que o exercício da mesma atividade econômica por dois anos foi completado em fevereiro de 2014, no curso de julgamento da apelação cível, devendo também por isso ser dado provimento ao recurso especial.
Requer seja o presente recurso recebido no duplo efeito diante da possibilidade de ocorrência de dano de difícil reparação, sendo, ao final, conhecido e provido.
Contrarrazões do Ministério Público Estadual às fls. 48.733⁄48.734. Afirma ser necessário o revolvimento de matéria fática para o conhecimento do recurso, o que não é possível em sede especial. Diz, também, não ter sido demonstrado o dissídio jurisprudencial, o que obsta o conhecimento do reclamo pela alínea c do permissivo constitucional. Ressalta, no mais, ter o v. acórdão local aplicado com acerto o direito, pois ficou comprovada a ausência de exercício de atividade empresarial no lapso temporal exigido pelo art. 48 da Lei 11.101⁄2005. Acrescenta que a recorrente passou a atuar no mercado de marketing multinível por meio de contrato de prestação de serviço e cessão de uso de marca com a sociedade internacional TELEXFREE em 1º.3.2012, tendo aforado a ação em 19.9.2013.
O recurso ascendeu a esta Corte por força de juízo positivo de admissibilidade (fls. 48.738⁄48.748).
A Subprocuradoria-Geral da República opina pelo improvimento do recurso em parecer assim sintetizado:
É o relatório.
RELATOR | : | MINISTRO RAUL ARAÚJO |
RECORRENTE | : | YMPACTUS COMERCIAL LTDA |
ADVOGADOS | : | DANNY FABRÍCIO CABRAL GOMES |
HORST VILMAR FUCHS E OUTRO (S) | ||
RECORRIDO | : | MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DO ESPÍRITO SANTO |
O EXMO. SR. MINISTRO RAUL ARAÚJO (RELATOR): Colhe-se dos autos que a sociedade empresária YMPACTUS COMERCIAL LTDA, cessionária do uso da marca TELEXFREE, teve seus bens bloqueados, assim como de seus sócios, por decisão judicial proferida em medida cautelar preparatória de ação civil pública - processo nº 0005669-76.2013.8.01.001, em trâmite perante a 2ª Vara Cível de Rio Branco - AC. Em virtude dessa decisão passou a enfrentar dificuldades econômicas, ingressando com pedido de recuperação judicial em 19.9.2013, o qual foi indeferido em primeiro grau de jurisdição, em vista dos seguintes fundamentos:
Em sede de apelação, o eg. Tribunal de Justiça do Estado do Espírito Santo ratificou a sentença de primeiro grau, sendo conveniente destacar os seguintes trechos do acórdão, que bem esclarecem a situação fática sobre a qual o presente recurso está assentado:
Passa-se ao exame dos dispositivos legais apontados como violados.
I - Da violação aos arts. 165, 458, II, e 535, I e II, do Código de Processo Civil, bem como de dissídio jurisprudencial em relação ao REsp 133.169⁄SP - Das omissões, contradições e obscuridades do aresto recorrido.
Sustenta a recorrente ter deixado o Tribunal estadual de prestar a completa jurisdição, deixando de se manifestar fundamentadamente sobre os dispositivos legais elencados nos embargos de declaração. Também teria a Corte local deixado de se pronunciar sobre a pertinência dos documentos novos juntados, especialmente aquele fornecido pela Receita Federal comprovando o efetivo exercício de atividade empresária desde 2011, bem como sobre a impossibilidade de o juízo de primeiro grau, tendo negado o processamento da recuperação judicial, ingressar desde logo na análise do mérito.
Da atenta leitura do acórdão recorrido, depreende-se que a Corte local não se omitiu acerca da abordagem dos temas jurídicos trazidos à discussão, tendo adotado solução equânime e coerente à questão que lhe fora posta, mediante suficientes razões. Havendo fundamentação bastante para a composição do litígio, dispensa-se a análise de todas as razões adstritas ao mesmo fim, pois a finalidade da jurisdição é compor a lide, e não discutir as teses jurídicas nos moldes expostos pelas partes.
Nesse contexto, não se constata a existência de omissão, contradição ou obscuridade a macular o aresto recorrido, assim como ausência de fundamentação, inexistindo violação aos dispositivos apontados.
Cumpre assinalar, ademais, a impertinência do dissenso jurisprudencial no que diz respeito à letra dos arts. 458 e 535 do Código de Processo Civil, pois o exame e debate acerca de eventual maltrato destas normas legais reclama a apreciação das particularidades de cada caso, impedindo a demonstração da divergência em virtude da diversidade das hipóteses colocadas em confronto.
II - Da violação ao art. 48, caput, da Lei 11.101⁄2005; ao art. 5º da LINDB; ao art. 3º da Constituição Federal e existência de dissídio jurisprudencial - Alegação de que para a efetiva comprovação do exercício de regular atividade econômica basta a comprovação do registro na Junta Comercial há mais de dois anos do pedido de recuperação judicial.
Afirma a recorrente terem sido cumpridos todos os requisitos exigidos no art. 48 da Lei 11.101⁄2005 para o deferimento do processamento do pedido de recuperação judicial, tendo comprovado o exercício regular de suas atividades nos dois anos que precederam o pedido de recuperação. Assegura, além disso, guarnecerem a petição inicial todos os documentos exigidos pelo art. 51 do mesmo Diploma Legal.
Assinala, nessa linha, estar regularmente inscrita na Junta Comercial desde 1º.2.2010, exercendo regularmente suas atividades conforme comprova o documento emitido pela Receita Federal, sendo que o fato de possuir baixo faturamento não lhe retira o direito de obter o benefício da recuperação judicial.
A questão em análise envolve um dos maiores desafios não somente dos empresários, mas também do próprio Direito Falimentar, qual seja, definir qual a melhor solução para a sociedade empresária ou o empresário individual em crise.
Como bem destacam LUIS FELIPE SALOMÃO e PAULO PENALVA SANTOS, em obra que é referência na matéria:
Buscando apontar alguns parâmetros para se identificar quando a sociedade empresária ou o empresário individual em crise tem direito ao benefício da recuperação judicial, o legislador estabeleceu no art. 48 da Lei 11.101⁄2005 alguns requisitos para o deferimento do processamento da recuperação, como se vê na redação do dispositivo:
Por sua vez, o art. 51 da Lei 11.101⁄2005 determina seja exposta na petição inicial a situação patrimonial do devedor, bem como as razões da crise da empresa, além de indicar a relação de documentos que devem instruir a petição inicial, ainda na fase postulatória. Confira-se:
No que concerne ao caso em análise, o cerne da controvérsia está na interpretação sobretudo do caput do artigo 48 acima transcrito, definindo-se se o prazo de mais de dois anos ali exigido é: (I) referente ao exercício regular de atividade empresarial em geral, sendo indiferente a mudança de ramo empreendedor; ou (II) se (o prazo) se reporta às mesmas atividades, ou correlatas, em que se baseia o pedido de recuperação, sendo inviável que se tenha exercido certas atividades no interregno exigido e agora se pretenda obter a recuperação para desenvolvimento de outro ramo de negócio totalmente diverso daquelas.
A questão se põe porque, no caso concreto, a recorrente, a partir de 1º.2.2010, iniciou suas atividades no ramo de comércio varejista de cosméticos, produtos de perfumaria e de higiene pessoal, sob a forma de sociedade limitada. Em 1º.3.2012 encerrou essa atividade, iniciando uma nova, ao firmar contrato de cessão de uso de marca com a sociedade empresária estadunidense Telexfree L.L.C. Passou, então, a atuar na forma de sociedade anônima, conforme assembleia de transformação realizada em 3.7.2013, com os seguintes objetivos sociais: portais, provedores de conteúdo e outros serviços de informação na internet e processamento de dados; agências de publicidade, com prestação de serviços de anúncios, promoção de vendas diretas e portais de divulgação comercial, consultoria em publicidade, pesquisa de mercado e de opinião pública e intermediação e agenciamento de serviços e negócios em geral, inclusive compra e venda de bens móveis e representação comercial. A essas novas atividades é que se refere o pedido de recuperação judicial, formulado em 20 de setembro de 2013.
Portanto, cabe interpretar a norma do art. 48 da Lei 11.101⁄2005 definindo-se quem é o legitimado ativo para o pedido de recuperação judicial.
Para uma melhor análise do tema, mostra-se relevante transcrever também o disposto no art. 966 do Código Civil⁄2002:
De acordo com o disposto no Código Civil de 2002, considera-se empresário, no Brasil, quem exerce profissionalmente atividade econômica organizada para a produção ou a circulação de bens ou de serviços. Conquanto a lei persista na redação dirigida ao empresário individual, pessoa física, está claro que também abrange as sociedades empresárias, pessoas jurídicas.
O critério para que se identifique determinada pessoa física como empresário está diretamente ligado à capacidade da pessoa, à inexistência de vedação legal e ao exercício de atividade própria de empresário. No que respeita à pessoa jurídica, está diretamente vinculada ao exercício de atividade privativa de empresário.
Como se observa na norma, não há exigência formal para que se reconheça determinada pessoa física ou jurídica como empresário. Não se exige que realize o prévio arquivamento de seus atos constitutivos na Junta Comercial. Assim, o registro não tem natureza constitutiva (exceção para o empresário rural), mas simplesmente declaratória.
É certo que a ausência de registro formal dificulta o exercício da empresa, negando garantias e tutelas asseguradas no direito empresarial (antes comercial), inviabilizando, por exemplo, a obtenção de registro no Cadastro Nacional de Pessoas Jurídicas (necessário também para o empresário individual), de matrícula no Instituto Nacional de Previdência Social, e outros acessos. Isto, por sua vez, impedirá a abertura de conta bancária, a emissão de notas fiscais, obstando também o recolhimento de tributos e a contratação com órgãos e entidades públicas.
Porém, mesmo se tratando de empresário irregular ou de fato, cuida-se, ainda, de empresário. Tanto é assim que o empresário irregular pode ter sua falência decretada. O que lhe é vedado, diante da ausência de registro, é requerer a falência de seu devedor (art. 97, § 1º, da Lei 11.101⁄2005), ou sua própria recuperação judicial, benefícios garantidos, como outros tantos, ao empresário regular.
Confira-se a lição de André Luiz Santa Cruz Ramos:
Assim, quando a Lei Civil vem, logo em seguida, no art. 967, dizer que "É obrigatória a inscrição do empresário no Registro Público de Empresas Mercantis da respectiva sede, antes do início de sua atividade", quer tratar de outro assunto, qual seja a regularidade do exercício da atividade empresarial, e não sua caracterização.
Com efeito, para determinada pessoa física ou jurídica ser considerada empresário regular, deve providenciar sua inscrição no Registro Público de Empresas Mercantis (Junta Comercial). Trata-se de critério de ordem formal. Assim, em princípio, para fins de identificar " o devedor que, no momento do pedido, exerça regularmente suas atividades", basta a comprovação da inscrição no Registro de Empresas, mediante a apresentação de certidão atualizada.
Como alerta Fábio Ulhoa Coelho: "É decorrência lógica do disposto no art. 48 da LF que apenas o empresário e a sociedade empresária em atividade estão legitimados para o pedido de recuperação judicial. Se a empresa está inativa, não há objeto a se recuperar"(in: Comentários à Lei de Falencias e de Recuperação de Empresas. 10ª ed. São Paulo: Saraiva, 2014, p. 173; grifou-se).
Insiste a recorrente, nessa linha, que bastaria a simples juntada da certidão atualizada da Junta Comercial para se comprovar a obediência a todos os requisitos do art. 48 da Lei 11.101⁄2005. Assim, tendo sido juntado referido documento, o deferimento do processamento da recuperação era de rigor.
Sucede, porém, que a Lei não exige somente a regularidade e atualidade no exercício da atividade, mas também o exercício pretérito por mais de dois anos.
No caso em debate, conforme já referido, houve mudança não somente da forma de organização societária (de responsabilidade limitada para sociedade anônima), como também do objeto social. A atividade anteriormente exercida pela recorrente se extinguiu (comércio varejista de cosméticos, produtos de perfumaria e de higiene pessoal), iniciando-se novo empreendimento (portais, provedores de conteúdo e outros serviços de informação na internet e processamento de dados). Como se vê, houve completa alteração do tipo societário e do objeto social. Assim, a certidão padrão da Junta Comercial é incapaz de retratar a verdadeira evolução societária.
De fato, o que se busca é que seja apresentada documentação apta a demonstrar o quadro fiel da empresa, de modo que os credores, em fase posterior do processo (fase deliberativa), possam avaliar a real situação econômica da empresa (art. 53, parágrafo único, da Lei 11.101⁄2005). A falta dos referidos documentos deve ensejar a abertura de prazo para a emenda da inicial e, somente no caso de não ser suprida a falha, seu indeferimento.
Nesse sentido, vem em reforço o supratranscrito art. 51 da Lei 11.101⁄2005, que traz a relação de documentos que devem instruir a petição inicial, os quais são suficientes para demonstrar o exercício de atividade pela empresa, exigindo sejam apresentadas as demonstrações contábeis relativas aos três últimos exercícios, compostas do balanço patrimonial, da demonstração de resultados acumulados, da demonstração do resultado do último exercício, bem como do relatório gerencial de fluxo de caixa e sua projeção.
O segundo ponto a ser enfrentado, então, é definir se os mais de dois anos de exercício regular das atividades empresariais que autorizam o devedor a requerer sua recuperação judicial, nos subsequentes termos do caput do art. 48 da Lei 11.101⁄2005, referem-se ao exercício regular de qualquer atividade empresarial, ou se é necessário que se trate da própria atividade, ou de atividade correlata, cuja recuperação se pretende.
A questão não é bem esclarecida na doutrina, pelo contrário. Talvez por não ser prática corrente nos pedidos de recuperação a mudança para novo ramo empresarial completamente distinto do anteriormente exercido dentro do interregno legal, certo é que o tema não é especificamente enfrentado pelos doutrinadores, ou, quando muito, é apenas tangenciado.
Confira-se, nessa linha, a lição de Arnoldo Wald e Ivo Waisberg ao comentarem o art. 48 da Lei 11.101⁄2005:
Também nesse sentido, a doutrina de Marlon Tomazette:
Sobre referido dispositivo legal, vale também trazer as sempre muito valiosas considerações feitas por Fábio Ulhoa Coelho:
Como se observa nos excertos transcritos, ao menos alguns trechos são sugestivos de que os olhos do intérprete devem estar voltados mais para a atividade empresarial do que para o empresário. O que importa analisar é a estabilidade da empresa (da atividade), e não a experiência do empresário.
Noutra concepção, tem-se o escólio de Manoel Justino Bezerra Filho, que, ao abordar o art. 48 da Lei 11.101⁄2005, destaca a figura do empresário, o qual deve demonstrar habilidade empresarial, conforme se observa no seguinte trecho de sua obra:
Como se observa no trecho transcrito, o ilustre Professor, conquanto volte sua atenção para o empresário, também não esclarece se os dois anos de atividade regular precisam ser no mesmo ramo de negócio.
Por outro lado, há lição firme no sentido de que, tendo em conta o vetor interpretativo do princípio da preservação da empresa, as normas da Lei 11.101⁄2005 devem ser interpretadas de modo a não criar óbices não expressamente estabelecidos, conforme preconiza Sérgio Campinho:
Nesse ponto, faz-se imperioso registrar que a recorrente ilustra seu recurso especial com valioso parecer da lavra de Fábio Ulhoa Coelho abordando o presente caso, para concluir que houve violação ao art. 48 da Lei de Falencias e Recuperação, pois:
Não obstante o brilho das cultas opiniões acima, e apesar de a Lei realmente não impor explicitamente que a legitimidade para o pedido de recuperação dependa de que o empresário exerça, por mais de dois anos, a atividade empresarial no mesmo ramo ou similar, uma interpretação sistemática da Lei 11.101⁄2005 parece sinalizar nesse sentido.
As determinações do art. 51, especialmente de seus incisos I e II, aliadas à regra do multicitado art. 48, só têm sentido se a exposição acerca das razões da crise econômico-financeira e as demonstrações contábeis exigidas forem referentes à atividade, à empresa mesma que se pretende recuperar. Não há boa justificativa para se exigir prazo de funcionamento e tanta documentação relativos a atividade que não mais se explore, na hipótese de mudança total de ramo, quando o pedido de processamento da recuperação judicial refere-se a uma nova atividade empresarial, a uma nova empresa, com base na qual será elaborado o plano de recuperação.
No ponto, a lição de Marlon Tomazette:
O que se pretende com a apresentação de referida documentação, e com a exposição da situação econômico-financeira da empresa, é criar um quadro fiel da condição econômica da sociedade empresária ou do empresário individual, de modo que os credores, em fase posterior do processo, possam confrontar esse quadro com o plano de recuperação judicial apresentado, concluindo pela real viabilidade ou não da continuidade do negócio (art. 58 da Lei 11.101⁄2005).
O princípio da preservação da empresa, expresso no art. 47 da Lei de Recuperações Judiciais e Falências, tem como objetivo a proteção da atividade da empresa, do empreendimento, e não do empresário, como ensina Fábio Ulhoa Coelho:
Assim, ainda que o empresário esteja atuando no mercado há muitos anos, a preocupação do legislador foi com a recuperação da atividade econômica, dada sua importância para a sociedade. Nesse sentido, para fazer jus ao esforço da recuperação, deve-se estar diante de uma atividade relevante, atual e experimentada, o que dificilmente se alcança com menos de dois anos de exercício.
Deve-se acrescentar, ainda, que seria estranho que pudesse o empresário ou a sociedade em dificuldade encerrar as atividades empresariais até então exploradas para dar início a outro ramo de negócio, totalmente diverso, solicitando recuperação judicial para essa nova investida. Traria, assim, na recuperação judicial o passivo acumulado em atividades anteriores, a ser superado pela proposta de recuperação com os novos empreendimentos, sem que pudessem os credores avaliar as perspectivas dos novos negócios desvinculados daqueles antigos.
Outra importante questão deve ser objeto de ponderação. Se o processamento do pedido de recuperação é indeferido em vista de descumprimento dos requisitos dos arts. 48 e 51 da Lei 11.101⁄2005, não há consequências diretas para o prosseguimento da empresa, que pode tentar valer-se de outros meios para conseguir sobreviver. Porém, deferido o processamento da recuperação judicial, caso não seja apresentado o plano de recuperação judicial, ou seja ele rejeitado pelos credores, a recuperação judicial será convolada em falência (arts 53 e 56, § 4º, da Lei 11.101⁄2005). Assim, caso o plano se mostre inconsistente por tratar-se de uma atividade neófita, a consequência será a falência.
De outro lado, caso os credores queiram prorrogar a quebra, evitando o prejuízo imediato, podem ser levados a aprovar qualquer plano de recuperação, mesmo inviável, trazendo para a crise outros empresários que se relacionarão com a empresa em recuperação, além de onerar a sociedade como um todo, o que desatende a finalidade do benefício.
Nesse sentido, parece que melhor atende o interesse público o indeferimento do pedido de processamento da recuperação judicial, se o empresário, ou sociedade empresária, não demonstra o exercício regular da atividade empresarial que pretende recuperar por mais de dois anos.
Rejeita-se, assim, a alegada violação ao art. 48 da Lei de Falencias e Recuperação Judicial.
Vale ressaltar, por fim, não ser o recurso especial sede competente para discussões acerca de violação a dispositivos constitucionais.
Não há falar, ainda, em violação ao art. 5º da LINDB, pois não houve interpretação extensiva e equivocada do art. 48 da Lei 11.101⁄2005 pelo Tribunal de origem, conforme já esclarecido.
No que respeita ao dissídio jurisprudencial em relação ao REsp 1.193.115⁄MT, não está demonstrado, por ausência de similitude fática entre os arestos em confronto. Com efeito, referido julgado não trata de situação em que o empresário altera o ramo de atividades e busca obter a recuperação judicial, mas sim de empresário rural, para quem a inscrição na Junta Comercial é indispensável, dada sua natureza constitutiva da condição de empresário.
Também a AC 994.09.293031 cuida de situação em que agricultor já exercendo atividade rural requer a recuperação judicial, sem a realização, porém, do registro na Junta Comercial, de caráter constitutivo.
Já o AI XXXXX-78.2013.8.26.0000⁄TJ⁄SP trata de situação em que sociedade constituída há menos de dois anos requer sua recuperação judicial e tem o prazo relevado, pois faz parte de grupo econômico o qual postulou que o "pleito recuperatório fosse analisado como um grupo todo" (fl. 48.446), o que não tem nenhuma relação com a situação dos autos.
III - Da violação ao art. 127 do Código de Processo Civil - Da alegação de que não cabe ao magistrado estender exigências legais - O instituto do Judge-Made Law.
Sustenta a recorrente que o art. 48 da Lei 11.101⁄2005 somente dispõe que a empresa deve comprovar o seu registro na Junta Comercial há dois anos do pedido de recuperação judicial. Porém, as instâncias ordinárias inovaram a lei, tendo o magistrado criado exigência legal, o que não se coaduna com o sistema processual, tendo em vista que o art. 127 do Código de Processo Civil somente permite o julgamento por equidade nos casos previstos em lei.
A matéria relativa ao julgamento por equidade não foi levada ao conhecimento da Corte de origem por meio de apelação, carecendo do indispensável prequestionamento, o que impede o conhecimento do recurso especial, no ponto.
De todo modo, como já consignado acima, a questão não é de criação de impedimentos que não constam na Lei, mas sim de interpretação do alcance dos termos da norma.
IV - Da violação aos arts. 51, II, e 52 da Lei 11.101⁄2005 e ao art. 284 do CPC e existência de dissídio jurisprudencial - Alegação de que, estando a documentação em ordem, é dever do magistrado autorizar o processamento da recuperação judicial.
Assevera a recorrente ter cumprido todos os requisitos para a concessão do pedido de processamento da recuperação judicial, com a juntada dos documentos exigidos pelo art. 51 da Lei 11.101⁄2005, com o que deveria o magistrado de piso ter deferido o pleito.
Como visto acima, concluiu a Corte local que a recorrente não atendeu ao requisito temporal do art. 48 da Lei 11.101⁄2005 para fazer jus aos benefícios da recuperação, carecendo de legitimidade para o pedido. Nesse contexto, nem sequer houve necessidade de exame da documentação exigida pelo art. 51 da Lei de Recuperações e Falência, ou da abertura de prazo para eventual juntada de documentos faltantes. Confira-se o seguinte trecho do aresto recorrido:
Dessa forma, não há como acolher a alegação de violação aos artigos 51, II, e 52 da Lei 11.101⁄2005 e ao art. 284 do CPC.
Cumpre assinalar que nos acórdãos trazidos como paradigmas foram cumpridos os requisitos exigidos pelo art. 48 da Lei 11.101⁄2005, o que não ocorreu no caso dos autos. Assim, não se constata a existência de similitude fática entre os arestos confrontados, requisito indispensável para a configuração do dissídio jurisprudencial.
V - Da negativa de vigência ao art. 53, II, da Lei 11.101⁄2005 e dissídio jurisprudencial - Impossibilidade de julgamento de mérito da recuperação judicial na fase postulatória.
Aduz a recorrente que o Tribunal de origem exerceu"futurologia"ao confirmar a sentença, afirmando que seu plano de recuperação judicial seria economicamente inviável, decisão, ademais, incompatível com a fase postulatória da recuperação.
Conforme esclarecido alhures, a Corte estadual entendeu não deter a recorrente legitimidade para requerer a recuperação judicial por desatender o requisito temporal do art. 48 da Lei 11.101⁄2005. Nesse sentido, não avançou no exame de mérito.
Porém, é certo que o Juízo de primeiro grau ingressou no exame da viabilidade econômica da sociedade em recuperação, conforme se observa no seguinte trecho da sentença:
Bem por isso, julgou o pedido improcedente com resolução de mérito, com fundamento no art 269, I, do Código de Processo Civil, o que, entretanto, não se mostra possível na fase postulatória.
Com efeito, conforme assentado pelo ilustre Ministro FERNANDO GONÇALVES, no julgamento do REsp 1.004.910⁄RJ, na fase postulatória examina-se a qualificação jurídica da sociedade empresária (ou do empresário individual), isto é, analisa-se se a sociedade detém legitimidade para o pedido de recuperação judicial, enquanto na fase deliberativa será apurada a viabilidade econômica da concessão do benefício.
Nessa linha, se o julgador entendeu que a recorrente carecia de legitimidade para requerer a recuperação judicial, deveria ter indeferido o pedido descabido, sem resolução de mérito. Não era correto prosseguir com o exame do mérito, questão a ser apreciada em momento subsequente.
Assim, assiste razão à recorrente no ponto, devendo ser modificada a sentença, confirmada pelo v. acórdão, para que conste o indeferimento do pedido de processamento da recuperação judicial sem resolução de mérito, com fundamento no art. 267, VI, do Estatuto Processual Civil.
VI - Da violação ao art. 47 da Lei 11.101⁄2005 e ao art. 3º, II, da Constituição Federal - Da violação ao princípio da preservação da empresa - necessidade de deferimento do pedido de processamento da recuperação judicial.
Assinala a recorrente que o indeferimento pelas instâncias ordinárias do pedido de recuperação judicial impede que usufrua da proteção do princípio da preservação da empresa, deixando de cumprir sua função social.
Cumpre assinalar, de início, que o princípio da preservação da empresa não é absoluto, pois não são todas as sociedades empresárias (ou empresários individuais) que merecem o sacrifício social representado pelo benefício da recuperação judicial. Mostra-se necessário o cumprimento dos requisitos trazidos pela Lei 11.101⁄2005, o que, conforme já visto, não ocorreu na presente hipótese. Além disso, é indispensável a concordância dos credores.
Vale transcrever as palavras de Fábio Ulhoa Coelho:
Nessa linha, diz Marlon Tomazette:
Não há, portanto, violação ao art. 47 da LF.
Ademais, não é o recurso especial sede própria para a discussão acerca de violação a dispositivos constitucionais.
VII - Da violação ao art. 462 do Código de Processo Civil - Ocorrência de fato superveniente, suficiente a modificar o julgado.
Diz a recorrente que, ainda que prevaleça o entendimento das instâncias ordinárias, em fevereiro de 2014 completou o prazo de dois anos de exercício da atividade que ensejou o pedido de recuperação judicial, devendo ser, por isso, provido o recurso especial.
Não é possível, com base na documentação desatualizada constante dos autos entender pela legitimidade ativa da recorrente, mesmo que já tenha sido alcançado o prazo de dois anos. De fato, como informado na inicial, a requerente teve seus bens bloqueados em ação cautelar que precede ação civil pública, não sendo possível, nesta sede, verificar se atualmente a recorrente mantém inscrição válida na Junta Comercial.
Por fim, no que se refere à " escandalosa manipulação da doutrina efetuada pelo Tribunal a quo", não aponta a recorrente o dispositivo que entende violado, o que impede seja a matéria conhecida nesta sede.
Com essas considerações, dá-se parcial provimento ao recurso especial, indeferindo-se o pedido de recuperação judicial, decretando-se a extinção do processo sem resolução de mérito, por carência de ação da requerente, nos termos do art. 267, VI, do CPC.
É como voto.
Número Registro: 2014⁄0218146-8 | PROCESSO ELETRÔNICO | REsp 1.478.001 ⁄ ES |
PAUTA: 03⁄11⁄2015 | JULGADO: 03⁄11⁄2015 |
RECORRENTE | : | YMPACTUS COMERCIAL LTDA |
ADVOGADOS | : | DANNY FABRÍCIO CABRAL GOMES |
HORST VILMAR FUCHS E OUTRO (S) |
Número Registro: 2014⁄0218146-8 | PROCESSO ELETRÔNICO | REsp 1.478.001 ⁄ ES |
PAUTA: 03⁄11⁄2015 | JULGADO: 10⁄11⁄2015 |
RECORRENTE | : | YMPACTUS COMERCIAL LTDA |
ADVOGADOS | : | DANNY FABRÍCIO CABRAL GOMES |
HORST VILMAR FUCHS E OUTRO (S) |
Documento: XXXXX | Inteiro Teor do Acórdão | - DJe: 19/11/2015 |