6 de Julho de 2022
- 2º Grau
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Detalhes da Jurisprudência
Processo
Órgão Julgador
Publicação
Julgamento
Relator
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Inteiro Teor
Superior Tribunal de Justiça Revista Eletrônica de Jurisprudência |
RELATOR | : | MINISTRO LUIS FELIPE SALOMÃO |
RECORRENTE | : | AUTO VIAÇÃO VITÓRIA RÉGIA LTDA |
ADVOGADO | : | JORGE ALEXANDRE M DE VASCONCELLOS E OUTRO (S) |
RECORRIDO | : | RAILSON MARREIROS DA ROCHA |
ADVOGADO | : | CELSO VALÉRIO FRANÇA VIEIRA E OUTRO (S) |
EMENTA
DIREITO CIVIL. RECURSO ESPECIAL. RESPONSABILIDADE CIVIL. LEGITIMIDADE PARA O AJUIZAMENTO DE AÇÃO INDENIZATÓRIA DE DANOS MORAIS POR MORTE. NOIVO. ILEGITIMIDADE ATIVA. NECESSÁRIA LIMITAÇÃO SUBJETIVA DOS AUTORIZADOS A RECLAMAR COMPENSAÇÃO.
1. Em tema de legitimidade para propositura de ação indenizatória em razão de morte, percebe-se que o espírito do ordenamento jurídico rechaça a legitimação daqueles que não fazem parte da família direta da vítima, sobretudo aqueles que não se inserem, nem hipoteticamente, na condição de herdeiro. Interpretação sistemática e teleológica dos arts. 12 e 948, inciso I, do Código Civil de 2002; art. 63 do Código de Processo Penal e art. 76 do Código Civil de 1916.
2. Assim, como regra - ficando expressamente ressalvadas eventuais particularidades de casos concretos -, a legitimação para a propositura de ação de indenização por dano moral em razão de morte deve mesmo alinhar-se, mutatis mutandis, à ordem de vocação hereditária, com as devidas adaptações.
3. Cumpre realçar que o direito à indenização, diante de peculiaridades do caso concreto, pode estar aberto aos mais diversificados arranjos familiares, devendo o juiz avaliar se as particularidades de cada família nuclear justificam o alargamento a outros sujeitos que nela se inserem, assim também, em cada hipótese a ser julgada, o prudente arbítrio do julgador avaliará o total da indenização para o núcleo familiar, sem excluir os diversos legitimados indicados. A mencionada válvula, que aponta para as múltiplas facetas que podem assumir essa realidade metamórfica chamada família, justifica precedentes desta Corte que conferiu legitimação ao sobrinho e à sogra da vítima fatal.
4. Encontra-se subjacente ao art. 944, caput e parágrafo único, do Código Civil de 2002, principiologia que, a par de reconhecer o direito à integral reparação, ameniza-o em havendo um dano irracional que escapa dos efeitos que se esperam do ato causador. O sistema de responsabilidade civil atual, deveras, rechaça indenizações ilimitadas que alcançam valores que, a pretexto de reparar integralmente vítimas de ato ilícito, revelam nítida desproporção entre a conduta do agente e os resultados ordinariamente dela esperados. E, a toda evidência, esse exagero ou desproporção da indenização estariam presentes caso não houvesse - além de uma limitação quantitativa da condenação - uma limitação subjetiva dos beneficiários.
5. Nessa linha de raciocínio, conceder legitimidade ampla e irrestrita a todos aqueles que, de alguma forma, suportaram a dor da perda de alguém – como um sem-número de pessoas que se encontram fora do núcleo familiar da vítima – significa impor ao obrigado um dever também ilimitado de reparar um dano cuja extensão será sempre desproporcional ao ato causador. Assim, o dano por ricochete a pessoas não pertencentes ao núcleo familiar da vítima direta da morte, de regra, deve ser considerado como não inserido nos desdobramentos lógicos e causais do ato, seja na responsabilidade por culpa, seja na objetiva, porque extrapolam os efeitos razoavelmente imputáveis à conduta do agente.
6. Por outro lado, conferir a via da ação indenizatória a sujeitos não inseridos no núcleo familiar da vítima acarretaria também uma diluição de valores, em evidente prejuízo daqueles que efetivamente fazem jus a uma compensação dos danos morais, como cônjuge⁄companheiro, descendentes e ascendentes.
7. Por essas razões, o noivo não possui legitimidade ativa para pleitear indenização por dano moral pela morte da noiva, sobretudo quando os pais da vítima já intentaram ação reparatória na qual lograram êxito, como no caso.
8. Recurso especial conhecido e provido.
ACÓRDÃO
Prosseguindo no julgamento, após o voto-vista da Ministra Maria Isabel Gallotti acompanhando o relator, e os votos dos Ministros Antonio Carlos Ferreira e Raul Araújo no mesmo sentido, a Turma, por unanimidade, deu provimento ao recurso especial, nos termos do voto do relator.Ausente, justificadamente, o Sr. Ministro Marco Buzzi.
Brasília (DF), 10 de abril de 2012 (Data do Julgamento)
MINISTRO LUIS FELIPE SALOMÃO
Relator
RECORRENTE | : | AUTO VIAÇÃO VITÓRIA RÉGIA LTDA |
ADVOGADO | : | JORGE ALEXANDRE M DE VASCONCELLOS E OUTRO (S) |
RECORRIDO | : | RAILSON MARREIROS DA ROCHA |
ADVOGADO | : | CELSO VALÉRIO FRANÇA VIEIRA E OUTRO (S) |
RELATÓRIO
O SENHOR MINISTRO LUIS FELIPE SALOMÃO (Relator):
1. Railson Marreiros da Rocha ajuizou ação de reparação de danos morais em face de Auto Viação Vitória Régia Ltda., noticiando que, no dia 4.10.2005, Cíntia Lima da Silva, sua noiva, com 19 (dezenove) anos de idade, foi vítima fatal de acidente causado por preposto da requerida. Informa que a vítima, em um dia de "apagão" na cidade, adentrou ônibus de propriedade da requerida e permaneceu no primeiro degrau da escada. Já com o veículo em movimento, e contra o alerta de outros passageiros, o motorista fechou a porta do ônibus, arremessando Cíntia para fora dele, fato que ocasionou a morte da noiva do autor por traumatismo craniano, alguns dias após o acidente.
O Juízo de Direito da 8ª Vara Cível de Manaus⁄AM extinguiu o processo por ilegitimidade ativa (fls. 114-115), sentença reformada em grau de apelação, por acórdão assim ementado:
Sobreveio recurso especial apoiado nas alíneas a e c do permissivo constitucional, no qual se alega, além de dissídio, ofensa ao art. 3º do Código de Processo Civil e art. 1.829 do Código Civil de 2002.
Aduz a recorrente, em breve síntese, que noivo não é parte legítima para pleitear indenização por danos morais em razão da morte de noiva, mesmo porque aquele não pertence à ordem de vocação hereditária prevista na legislação civil.
Contra-arrazoado (fls. 191-196), o especial foi admitido (fls. 198-199).
É o relatório.
RELATOR | : | MINISTRO LUIS FELIPE SALOMÃO |
RECORRENTE | : | AUTO VIAÇÃO VITÓRIA RÉGIA LTDA |
ADVOGADO | : | JORGE ALEXANDRE M DE VASCONCELLOS E OUTRO (S) |
RECORRIDO | : | RAILSON MARREIROS DA ROCHA |
ADVOGADO | : | CELSO VALÉRIO FRANÇA VIEIRA E OUTRO (S) |
EMENTA
DIREITO CIVIL. RECURSO ESPECIAL. RESPONSABILIDADE CIVIL. LEGITIMIDADE PARA O AJUIZAMENTO DE AÇÃO INDENIZATÓRIA DE DANOS MORAIS POR MORTE. NOIVO. ILEGITIMIDADE ATIVA. NECESSÁRIA LIMITAÇÃO SUBJETIVA DOS AUTORIZADOS A RECLAMAR COMPENSAÇÃO.
1. Em tema de legitimidade para propositura de ação indenizatória em razão de morte, percebe-se que o espírito do ordenamento jurídico rechaça a legitimação daqueles que não fazem parte da família direta da vítima, sobretudo aqueles que não se inserem, nem hipoteticamente, na condição de herdeiro. Interpretação sistemática e teleológica dos arts. 12 e 948, inciso I, do Código Civil de 2002; art. 63 do Código de Processo Penal e art. 76 do Código Civil de 1916.
2. Assim, como regra - ficando expressamente ressalvadas eventuais particularidades de casos concretos -, a legitimação para a propositura de ação de indenização por dano moral em razão de morte deve mesmo alinhar-se, mutatis mutandis, à ordem de vocação hereditária, com as devidas adaptações.
3. Cumpre realçar que o direito à indenização, diante de peculiaridades do caso concreto, pode estar aberto aos mais diversificados arranjos familiares, devendo o juiz avaliar se as particularidades de cada família nuclear justificam o alargamento a outros sujeitos que nela se inserem, assim também, em cada hipótese a ser julgada, o prudente arbítrio do julgador avaliará o total da indenização para o núcleo familiar, sem excluir os diversos legitimados indicados. A mencionada válvula, que aponta para as múltiplas facetas que podem assumir essa realidade metamórfica chamada família, justifica precedentes desta Corte que conferiu legitimação ao sobrinho e à sogra da vítima fatal.
4. Encontra-se subjacente ao art. 944, caput e parágrafo único, do Código Civil de 2002, principiologia que, a par de reconhecer o direito à integral reparação, ameniza-o em havendo um dano irracional que escapa dos efeitos que se esperam do ato causador. O sistema de responsabilidade civil atual, deveras, rechaça indenizações ilimitadas que alcançam valores que, a pretexto de reparar integralmente vítimas de ato ilícito, revelam nítida desproporção entre a conduta do agente e os resultados ordinariamente dela esperados. E, a toda evidência, esse exagero ou desproporção da indenização estariam presentes caso não houvesse - além de uma limitação quantitativa da condenação - uma limitação subjetiva dos beneficiários.
5. Nessa linha de raciocínio, conceder legitimidade ampla e irrestrita a todos aqueles que, de alguma forma, suportaram a dor da perda de alguém – como um sem-número de pessoas que se encontram fora do núcleo familiar da vítima – significa impor ao obrigado um dever também ilimitado de reparar um dano cuja extensão será sempre desproporcional ao ato causador. Assim, o dano por ricochete a pessoas não pertencentes ao núcleo familiar da vítima direta da morte, de regra, deve ser considerado como não inserido nos desdobramentos lógicos e causais do ato, seja na responsabilidade por culpa, seja na objetiva, porque extrapolam os efeitos razoavelmente imputáveis à conduta do agente.
6. Por outro lado, conferir a via da ação indenizatória a sujeitos não inseridos no núcleo familiar da vítima acarretaria também uma diluição de valores, em evidente prejuízo daqueles que efetivamente fazem jus a uma compensação dos danos morais, como cônjuge⁄companheiro, descendentes e ascendentes.
7. Por essas razões, o noivo não possui legitimidade ativa para pleitear indenização por dano moral pela morte da noiva, sobretudo quando os pais da vítima já intentaram ação reparatória na qual lograram êxito, como no caso.
8. Recurso especial conhecido e provido.
VOTO
O SENHOR MINISTRO LUIS FELIPE SALOMÃO (Relator):
2. A controvérsia ora em exame, apesar de antiga, não está resolvida no âmbito jurisprudencial, tampouco é, amiúde, debatida em sede doutrinária, mas vem ganhando relevo diante de situações cada vez mais frequentes da vida moderna.
A verdade é que não há uma sistematização mais ampla acerca do tema da legitimidade para propor ação de indenização por dano moral em razão de morte.
É pacífica a legitimidade ativa de cônjuges e parentes de primeiro grau do falecido para propor ação de indenização por dano moral, em razão da morte de ente querido.
Acuso também a existência de precedentes a apregoar a legitimidade ativa do irmão da vítima para propor a mesma ação (REsp 254.318⁄RJ, Rel. Ministro RUY ROSADO DE AGUIAR, QUARTA TURMA, julgado em 22⁄03⁄2001), e ainda do sobrinho que vivia na mesma residência do falecido (REsp 239.009⁄RJ, Rel. Ministro SÁLVIO DE FIGUEIREDO TEIXEIRA, QUARTA TURMA, julgado em 13⁄06⁄2000).
A propósito do presente caso, em que o noivo pleiteia indenização por danos morais em razão da morte da nubente, convém realizar um exame mais aprofundado do tema.
Como já salientei na relatoria do REsp. n. 866.220⁄BA, julgado em 17.8.2010, se todos aqueles que sofressem abalo moral pudessem buscar sua compensação, ter-se-ia a esdrúxula situação de, por exemplo, fãs de um astro da música morto requererem judicialmente a verba compensatória.
Ou, ainda, se a investigação pura e simples acerca do sofrimento experimentado por alguém fosse suficiente para conferir legitimidade à pretensão, a cadeia de legitimados para pedir a compensação de dor moral se estenderia ad infinitum, abarcando todos os parentes, amigos, vizinhos ou, até mesmo, admiradores da vítima.
Isso porque não se nega a dor gerada pela perda de um grande amigo ou de um parente relativamente próximo - como, por exemplo, um tio.
Nessa esteira, cumpre salientar que, em não raras vezes, quando se cogita de indicar os legitimados para propositura de ações por danos morais – sobretudo em razão de morte –, inverte-se a ótica de análise e se perquire primeiramente sobre o sofrimento experimentado, quedando-se ao largo primordial questão, sobre se o ordenamento jurídico confere o direito de reparação àquele que alegadamente experimentou o dano.
Em outras palavras, se é verdade que uma gama de sujeitos pode experimentar dor moral em razão da morte de uma pessoa, a comprovação de tal sofrimento hospeda-se na seara do mérito da causa e não da legitimidade para agir, sob pena de se conferir a todos que experimentaram abalo moral relevante a via da ação indenizatória. E, assim, em última análise, a legitimidade para propor ação de compensação por dano moral resumir-se-ia à questão da prova do sofrimento, seja por presunção in re ipsa – como ocorre nos casos típicos – seja por demonstração, como se pode imaginar em situações limítrofes, em que o abalo moral não é perceptível primo ictu oculi.
Assim, estando plenamente demonstrado o agudo sofrimento – algo bastante factível -, há amparo legal para um amigo ou um grande admirador da vítima morta pleitear indenização por dano moral? E o que dizer do noivo, como no caso ora em exame?
Em suma, para além do trinômio ato-dano-nexo, que se relaciona com a procedência ou improcedência do pedido de responsabilidade civil por abalo moral, há anterior questão a ser solucionada: a legitimidade, para cuja existência há de se exigir mais que o sofrimento, o qual, amiúde, encontra-se presente nas mais corriqueiras situações subjacentes à morte, como a amizade, namoro, vizinhança ou admiração artística.
3. Como é de conhecimento cursivo, a legitimidade ad causam se faz presente quando o direito afirmado pertence a quem propõe a demanda e possa ser exigido daquele em face de quem a demanda é proposta (BEDAQUE, José Roberto dos Santos. Código de processo civil interpretado. Antônio Carlos Marcato (Coord.). 3 ed. São Paulo: Atlas, 2008, p. 20). E, nesse passo, se o ordenamento jurídico nem em tese confere o direito pleiteado àquele que o pleiteia, mas a outrem, o caso é de ilegitimidade ativa.
A controvérsia ora analisada, com efeito, cinge-se em saber a quem o ordenamento jurídico confere o direito a pleitear reparação pelo dano moral sofrido, direito esse que, como adiantado, não deve ser franqueado a todos aqueles que, de alguma forma, experimentaram abalo extrapatrimoinal em razão da morte de alguém.
Atento a essa questão, o Código Civil Português, no art. 496º, n.º 2, determina que: "Por morte da vítima, o direito à indemnização por danos não patrimoniais cabe, em conjunto, ao cônjuge não separado judicialmente de pessoas e bens e aos filhos ou outros descendentes; na falta destes, aos pais ou outros ascendentes; e, por último aos irmãos ou sobrinhos que os representem".
À ausência de disposição legislativa desse jaez no ordenamento brasileiro, o mister de dizer a quem é dado pleitear indenização por dano moral, em razão de falecimento, cabe à jurisprudência e à doutrina.
Por exemplo, o professor Sergio Cavalieri Filho entende que "só em favor do cônjuge, companheira, filhos, pais e irmãos menores há uma presunção iuris tantum de dano moral por lesões sofridas pela vítima ou em razão de sua morte" (Programa de responsabilidade civil. 7 ed. São Paulo: Atlas, 2007, p. 84).
Humberto Theodoro Junior também mostra inquietação diante da possibilidade de, na falta de disposição atual clara, franquear a todos legitimidade para propor a ação de responsabilidade por dano moral, muito embora o mestre mineiro não seja infenso à possibilidade de conceder indenizações a pessoas fora no núcleo familiar:
Caio Mário da Silva Pereira também disserta acerca desse tormentoso tema, franqueando ao cônjuge sobrevivente e aos herdeiros a via da ação indenizatória, no que couber, à sombra da ordem de vocação hereditária:
Em direção paralela é a posição Carlos Alberto Bittar:
3.1. Como dito alhures, o esforço argumentativo de doutrinadores de escol deve-se à ausência de regra legal própria e explícita acerca dos legitimados a propor a indenização por morte, circunstância a exigir a integração hermenêutica do juiz.
Como é de curial sabença, a lacuna existe na lei e não no ordenamento jurídico, o qual, ainda que por integração judiciária, deve sempre fornecer a solução ao caso concreto.
Admite-se a integração mediante o uso da analogia, a fim de alcançar casos não expressamente contemplados, mas cuja essência coincida com outros tratados pelo legislador.
Nas palavras de Caio Mário da Silva Pereira:
3.2. Para a solução do caso ora em exame, poder-se-ia cogitar de integração analógica com o que dispõe o parágrafo único do art. 12 do Código Civil, verbis:
O Código Civil de 1916, à sua vez, trazia regra expressa acerca do direito de ação para a tutela de interesses morais, reservando legitimidade apenas ao autor ou à sua família:
Por outro lado, o art. 948, inciso I, do Código Civil atual, quando trata da indenização devida em razão de homicídio, refere-se também ao luto da família:
Finalmente, o Código de Processo Penal prevê como legitimados para a ação civil ex delicto, além do ofendido, o representante legal ou os herdeiros:
Com efeito, de tudo o que se afirmou até agora, e à vista de uma leitura sistemática dos diversos dispositivos de lei que se assemelham com a questão da legitimidade para propositura de ação indenizatória em razão de morte, percebe-se que o espírito do ordenamento jurídico rechaça a legitimação daqueles que não fazem parte da família direta da vítima, sobretudo aqueles que não se inserem, nem hipoteticamente, na condição de herdeiro – afora, evidentemente, a possibilidade de ser herdeiro testamentário.
3.3. Ou seja, a legitimação para a propositura de ação de indenização por dano moral em razão de morte deve mesmo alinhar-se, mutatis mutandis, à ordem de vocação hereditária, com as devidas adaptações (como, por exemplo, tornando irrelevante o regime de bens do casamento), porquanto o que se busca é a compensação exatamente de um interesse extrapatrimonial.
Afirma-se isso não em razão de uma escolha arbitrária acerca da regra aplicável, mas porque, à falta de dispositivo próprio sobre do tema, ancoro-me no apotegma romano segundo o qual onde houver a mesma razão, haverá o mesmo direito - ubi eadem ratio ibi idem jus.
É que eventual rol de legitimados para a propositura de ação indenizatória por dano moral em razão de morte – assim como há no direito português – não poderia levar em consideração senão as afeições existentes (ou presumidamente existentes) entre o falecido e o ente sobrevivente, tal como o que ocorre com as disposições legais sobre a vocação hereditária.
Vale dizer, se é verdade que, tanto na ordem de vocação hereditária quanto na indenização por dano moral em razão de morte, o fundamento axiológico são as legítimas afeições nutridas entre quem se foi e quem ficou, para se proceder à indispensável limitação da cadeia de legitimados para a indenização, nada mais correto que conferir aos mesmos sujeitos o direito de herança e o direito de pleitear a compensação moral.
4. Nessa esteira, parece interessante um panorama acerca das origens do direito de herança e da ordem de vocação hereditária.
O direito de herança, na antiguidade grega e romana, estava intimamente relacionado com o culto aos mortos, os quais eram considerados deuses domésticos que, outrora, apossaram-se da terra na qual foi edificado o lar. Assim, a propriedade anterior do antepassado não poderia transbordar os lindes de sua família, como bem revela a passagem do clássico de Fustel de Coulanges A cidade antiga:
Eis aí uma justificativa da persistência de Antígona, na tragédia de mesmo nome de Sófocles, em proceder ao sepultamento do irmão Polinices, mesmo contra os éditos do governo de Creonte, que, como se sabe, proibiu a prestação de honras fúnebres àqueles que se insurgissem contra Tebas.
Nessa linha, o direito sucessório entre os antigos fincava raízes na divindade que se hospedava nos lindes da propriedade familiar, não podendo essa se extinguir – porque a ela subjaziam deuses da religião doméstica, os antepassados – nem ser ela abandonada, o que transformava a herança, a um só tempo, em um direito e uma obrigação.
Essa ideia é explicada na seguinte passagem de A cidade antiga:
Ainda hoje, mesmo que por outros fundamentos e até de forma intuitiva, há um sentimento geral de que propriedade privada deva ser repassada, por causa mortis, aos entes da família ou àqueles por quem o de cujus era afeiçoado.
Porém, a ordem de vocação hereditária encontra outras explicações nos tratados civilistas atuais. A teoria mais conhecida e aceita sobre a principiologia da sucessão legítima e da ordem de vocação hereditária conferida pela Lei Civil é a que as atribui à vontade presumida do falecido, o qual, se a tivesse manifestado, razoavelmente disporia de seus bens a partir daquela ordem, porquanto graduaria a sucessão da mesma forma que gradua suas afeições.
Ainda proferida sob a égide do Código Civil revogado, afigura-se acertada a posição de J. M. Carvalho Santos, interpretando o art. 1.573 daquele Diploma, no sentido de que a lei interpreta a vontade do falecido de acordo com a ordem das afeições daquele e distribui a parte disponível tal como a seu juízo seria distribuída pelo de cujus (Código civil brasileiro interpretado. Vol. XXII. 13 ed. Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 1988, p. 23).
Ou seja, a lei procura suprir a vontade presumida do falecido, que, naturalmente, se fosse ouvido, se inclinaria antes de tudo pelas suas afeições e seu amor à família, preferindo que os parentes fossem seus naturais herdeiros (Ibidem).
Assim, ainda no tempo em que a lei civil não considerava o cônjuge como herdeiro necessário, mostrava-se correta a assertiva segundo a qual:
Daí por que Clóvis Beviláqua aduziu que, na linha colateral, extingue-se o direito de herança no quarto grau porque, além dele, desaparecem o sentimento de unidade da família e o vínculo de simpatia entre os parentes (Apud, CARVALHO SANTOS, J. M. Op. cit. P. 249).
Portanto, é correto afirmar que a ordem de vocação hereditária visa a preservar uma espécie de sucessão por afeição, valores metajurídicos relativos essencialmente aos vínculos nascidos no seio das relações familiares.
É esse, assim, o fundamento metajurídico de herdar em primeiro lugar filhos e cônjuges para só depois herdarem os colaterais.
Portanto, parece razoável estabelecer o mesmo fundamento para a criação de uma ordem de legitimados para receber indenização pela dor moral decorrente da morte de ente querido, porque aqui também o valor jurídico justificador se alinha aos valores inseridos na ordem de vocação hereditária.
Assim, tendo em vista a analogia com os já citados arts. 12 e 948 do Código Civil de 2002; art. 76 do Código Civil de 16; e art. 63 do Código de Processo Penal, aos quais acrescento o art. 1.829 do Código Civil – que trata da ordem de vocação hereditária -, a título de regra a ser assumida para a ordem de legitimados a pleitear indenização por dano moral por morte, independentemente do regime de bens do falecido e do ente sobrevivente, entendo que, de regra, somente podem pleitear a compensação:
- o cônjuge ou companheiro (a) em concorrência com os descendentes;
- o cônjuge ou companheiro (a) em concorrência com os ascendentes, na falta de descendentes;
- o cônjuge ou companheiro (a), na falta de descendentes e de ascendentes;
- os colaterais até o quarto grau.
Mister realçar que o direito à indenização, diante de peculiaridades do caso concreto, pode estar aberto aos mais diversificados arranjos familiares, devendo o juiz avaliar se as particularidades de cada família nuclear justificam o alargamento a outros sujeitos que nela se inserem, assim também, em cada hipótese a ser julgada, o prudente arbítrio do julgador avaliará o total da indenização para o núcleo familiar, sem excluir os diversos legitimados ora indicados.
A mencionada válvula que aponta para as múltiplas facetas que podem assumir essa realidade metamórfica chamada família justifica precedente da Quarta Turma que conferiu legitimidade ao sobrinho do falecido, uma vez que, de fato, fazia parte do núcleo doméstico do ofendido, inserindo-se assim na chamada família nuclear (REsp 239.009⁄RJ, Rel. Ministro Sálvio de Figueiredo Teixeira, Quarta Turma, julgado em 13⁄6⁄2000), assim também à sogra que fazia as vezes de mãe (REsp 865.363⁄RJ).
Ademais, justifica-se também que a indenização por morte seja destinada ao núcleo familiar de forma global e não a cada um de seus membros, com a divisão do valor entre os integrantes da família, evitando-se também que as ações sejam pulverizadas. Nesse sentido vem se inclinando a jurisprudência da Quarta Turma: REsp 687.567⁄RS, Rel. Ministro Cesar Asfor Rocha, Quarta Turma, julgado em 28⁄6⁄2005, DJ 13⁄3⁄2006; REsp 163.484⁄RJ, Rel. Ministro Ruy Rosado de Aguiar, Quarta Turma, julgado em 20⁄8⁄1998
Embora por outros fundamentos, este também é o entendimento de Humberto Theodoro Junior:
5. A responsabilidade civil, é bem verdade, está ancorada em princípios caros, como é o relativo à integral reparação.
Ressalte-se, porém, que o princípio da integral reparação não obsta a solução limitativa ora proposta, uma vez que deve ser entendido como a exigência de se conceder reparação plena àqueles legitimados a tanto pelo ordenamento jurídico, mas que não deve possuir tal princípio a virtualidade de tornar ilimitada a cadeia de legitimados para a persecução da reparação do sentimento eventualmente gerado pela morte de alguém.
Por outro lado, há muito no direito comparado – no que foi acompanhado pelo Código Civil de 2002 –, há regra que minimiza a indenização a ser paga pelo causador do dano, mitigando, em alguma medida, o princípio da integral reparação, que decerto não é absoluto.
Refiro-me à norma prevista no art. 944, parágrafo único, do Código Civil de 2002, que consubstancia a baliza para um juízo de ponderação pautado na proporcionalidade e na equidade, quando houver evidente desproporção entre a culpa e o dano causado.
O mencionado artigo possui a seguinte redação:
A meu juízo, encontra-se subjacente a essa regra uma outra principiologia que, a par de reconhecer o direito à integral reparação, ameniza-o em havendo um dano irracional que escapa dos efeitos que se esperam do ato causador.
O Ministro Paulo de Tarso Sanseverino, em obra doutrinária, bem elucida os fundamentos do artigo ora em análise, como sendo uma erupção tópica no princípio da integral reparação, voltada à correção de injustiças do caso concreto com base nas regras de sobredireito alusivas à proporcionalidade e à equidade, para que a obrigação de indenizar, em hipóteses limítrofes, não signifique um inferno de severidade:
De fato, o sistema de responsabilidade civil atual rechaça indenizações ilimitadas que alcançam valores que, a pretexto de reparar integralmente vítimas de ato ilícito, revelam nítida desproporção entre a conduta do agente e os resultados ordinariamente dela esperados.
E, a toda evidência, esse exagero ou desproporção da indenização estariam presentes caso não houvesse - além de uma limitação quantitativa da condenação - uma limitação subjetiva dos beneficiários.
Conceder legitimidade ampla e irrestrita a todos aqueles que, de alguma forma, suportaram a dor da perda de alguém – como um sem-número de pessoas que se encontram fora do núcleo familiar da vítima – significa impor ao obrigado um dever também ilimitado de reparar um dano cuja extensão será sempre desproporcional ao ato causador.
Ao reverso, quando se limitam os legitimados a pleitear a indenização por dano moral (limitação subjetiva), há também uma limitação na indenização global a ser paga pelo ofensor, redução essa que é autorizada pela ratio inserta no art. 944, parágrafo único, do Código Civil.
De fato, se a indenização pode ser limitada para evitar a desproporção a que faz referência o parágrafo único do art. 944 do Código Civil, conferir a via da ação indenizatória a sujeitos não inseridos no núcleo familiar da vítima acarretaria também uma diluição de valores, em evidente prejuízo daqueles que efetivamente fazem jus a uma compensação dos danos morais, como cônjuge⁄companheiro, descendentes e ascendentes.
Se, por exemplo, familiares e não familiares ajuízassem uma ação em conjunto, tal diluição necessariamente ocorreria. Caso os familiares ajuízassem separadamente as ações, o juiz deve ponderar a possibilidade de futuramente um outro "legitimado" intentar a mesma ação, o que, além de prejudicar os familiares diretos, geraria também, no mínimo, uma desordem no sistema.
Cumpre ressaltar que, muito embora o dispositivo faça referência à desproporcionalidade entre a culpa e o dano, nada impede seja ele utilizado em casos de responsabilidade objetiva. Basta que, mantendo sua principiologia, pautada na equidade e na proporcionalidade, a análise se desloque para o nexo causal, em hipóteses em que a relevância da causa do dano não seja condizente com os resultados danosos. Ou seja, havendo também uma desproporção causal entre o ato e o dano, justifica-se a incidência da regra prevista no art. 944, parágrafo único, do Código Civil (SANSEVERINO, Paulo de Tarso Vieira. Op. cit. p. 123).
Assim, o dano por ricochete a pessoas não pertencentes ao núcleo familiar da vítima direta da morte, de regra, deve ser considerado como não inserido nos desdobramentos lógicos e causais do ato, seja na responsabilidade por culpa, seja na objetiva, porque extrapolam os efeitos razoavelmente imputáveis à conduta do agente.
6. No caso concreto, por força da fundamentação acima deduzida, o noivo não possui legitimidade ativa para pleitear indenização por dano moral pela morte da noiva, sobretudo quando os pais da vítima já intentaram ação reparatória na qual lograram êxito, como no caso (fls. 119-123).
De fato, como o exame da questão se situa apenas no campo da legitimidade à causa, e o autor afirma na inicial que foi noivo da vítima, e não companheiro, inafastável sua ilegitimidade.
7. Diante do exposto, dou provimento ao recurso especial para restabelecer a sentença terminativa por ilegitimidade ativa, inclusive quanto aos consectários legais.
É como voto.
Número Registro: 2008⁄0160829-9 | PROCESSO ELETRÔNICO | REsp 1.076.160 ⁄ AM |
PAUTA: 20⁄03⁄2012 | JULGADO: 20⁄03⁄2012 |
RECORRENTE | : | AUTO VIAÇÃO VITÓRIA RÉGIA LTDA |
ADVOGADO | : | JORGE ALEXANDRE M DE VASCONCELLOS E OUTRO (S) |
RECORRIDO | : | RAILSON MARREIROS DA ROCHA |
ADVOGADO | : | CELSO VALÉRIO FRANÇA VIEIRA E OUTRO (S) |
Número Registro: 2008⁄0160829-9 | PROCESSO ELETRÔNICO | REsp 1.076.160 ⁄ AM |
PAUTA: 20⁄03⁄2012 | JULGADO: 27⁄03⁄2012 |
RECORRENTE | : | AUTO VIAÇÃO VITÓRIA RÉGIA LTDA |
ADVOGADO | : | JORGE ALEXANDRE M DE VASCONCELLOS E OUTRO (S) |
RECORRIDO | : | RAILSON MARREIROS DA ROCHA |
ADVOGADO | : | CELSO VALÉRIO FRANÇA VIEIRA E OUTRO (S) |
RELATOR | : | MINISTRO LUIS FELIPE SALOMÃO |
RECORRENTE | : | AUTO VIAÇÃO VITÓRIA RÉGIA LTDA |
ADVOGADO | : | JORGE ALEXANDRE M DE VASCONCELLOS E OUTRO (S) |
RECORRIDO | : | RAILSON MARREIROS DA ROCHA |
ADVOGADO | : | CELSO VALÉRIO FRANÇA VIEIRA E OUTRO (S) |
Número Registro: 2008⁄0160829-9 | PROCESSO ELETRÔNICO | REsp 1.076.160 ⁄ AM |
PAUTA: 20⁄03⁄2012 | JULGADO: 10⁄04⁄2012 |
RECORRENTE | : | AUTO VIAÇÃO VITÓRIA RÉGIA LTDA |
ADVOGADO | : | JORGE ALEXANDRE M DE VASCONCELLOS E OUTRO (S) |
RECORRIDO | : | RAILSON MARREIROS DA ROCHA |
ADVOGADO | : | CELSO VALÉRIO FRANÇA VIEIRA E OUTRO (S) |
Documento: 1132829 | Inteiro Teor do Acórdão | - DJe: 21/06/2012 |