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25 de Abril de 2024

Dano moral: o esforço diário da Justiça para evitar a indústria das indenizações

há 9 anos

O instituto do dano moral no direito brasileiro tem se transformado com o decorrer do tempo. Instituído em 1916, com o antigo Código Civil, em seus artigos 76 e 159, ele foi consolidado pela Constituição Federal de 1988, chegando à fase atual, pós Código Civil de 2002 e Código de Defesa do Consumidor.

O dicionário conceitua dano como defeito, estrago, perda, mal ou ofensa que se faz a alguém. Em sentido comum, significa prejuízo, destruição, inutilização ou deterioração de coisa alheia. Em termos jurídicos, segundo Fabrício Zamprogna Matiello, autor do livro “Dano moral, dano material e reparação”, dano é “qualquer ato ou fato humano produtor de lesões a interesses alheios juridicamente protegidos”.

Para o jurista Caio Mario da Silva Pereira, o dano moral é “qualquer sofrimento humano que não é causado por uma perda pecuniária e abrange todo atentado à sua segurança e tranquilidade, ao seu amor próprio estético, à integridade de sua inteligência, às suas afeições etc...”.

Wilson Melo da Silva explica que danos morais são lesões sofridas pelo sujeito físico ou pessoa natural de direito em seu patrimônio ideal, que é o conjunto de tudo aquilo que não seja suscetível de valor econômico. Por esse entendimento doutrinário, o dano moral é qualquer dano não patrimonial.

Diante da amplitude e subjetividade em sua definição, o instituto vem sendo reiteradamente invocado em pedidos de indenização descabidos, quando o sofrimento alegado pelo autor da ação, no fundo, não representa mais do que um mero dissabor. Tais pedidos são formulados muitas vezes com o intuito de enriquecimento sem causa por parte daqueles que afirmam possuir direito à reparação de um dano que está limitado ao simples aborrecimento.

O mau uso do direito e a facilidade em obter a assistência judiciária têm preocupado os ministros do Superior Tribunal de Justiça (STJ), que se deparam diariamente com pedidos sem propósito e que sobrecarregam uma Justiça em busca de soluções para a crescente quantidade de processos.

Aborrecimentos diários

No REsp 1.399.931, de relatoria do ministro Sidnei Beneti (já aposentado), o recorrente comprou um tablet pela internet para presentear o filho no Natal. A mercadoria não foi entregue, e o consumidor apresentou ação de indenização por danos morais.

De acordo com Beneti, a jurisprudência do STJ tem assinalado que os aborrecimentos comuns do dia a dia, “os meros dissabores normais e próprios do convívio social, não são suficientes para originar danos morais indenizáveis”.

Para ele, a falha na entrega da mercadoria adquirida pela internet configura, em princípio, “mero inadimplemento contratual, não dando causa a indenização por danos morais. Apenas excepcionalmente, quando comprovada verdadeira ofensa a direito de personalidade, será possível pleitear indenização a esse título”.

Segundo Beneti, o descumprimento contratual nesse caso não trouxe outras consequências, como a frustração de um evento familiar especial ou a inviabilização da compra de outros presentes de Natal. Também não ficou comprovado que o tablet seria dado de presente ao filho adolescente. Nem mesmo a existência do menor ficou demonstrada nos autos.

Por essas razões, a Terceira Turma do STJ, de maneira unânime, decidiu que não são devidos danos morais ao consumidor que adquire pela internet mercadoria para presentear e não a recebe conforme esperado.

Transtorno em viagem

Na mesma linha do processo anterior, a Quarta Turma, também de maneira unânime, decidiu que atraso em voo doméstico inferior a oito horas, sem a ocorrência de consequências graves, não gera dano moral.

Conforme explicou o ministro Luis Felipe Salomão, relator do REsp 1.269.246, a verificação do dano moral “não reside exatamente na simples ocorrência do ilícito”, pois nem todo ato em desacordo com o ordenamento jurídico possibilita indenização por dano moral.

Para ele, o importante é que “o ato seja capaz de irradiar-se para a esfera da dignidade da pessoa, ofendendo-a de maneira relevante”. Por isso, Salomão diz que a doutrina e a jurisprudência têm afirmado de maneira “uníssona” que o mero inadimplemento contratual não se revela bastante para gerar dano moral.

Nesse caso, tanto o juízo de primeira instância quanto o tribunal local afirmaram que não ficou demonstrado nenhum prejuízo adicional além do atraso do voo, de aproximadamente oito horas, pois a Gol Transportes Aéreos S/A forneceu duas opções para os passageiros: estadia em hotel custeado pela companhia ou viagem de ônibus até o aeroporto de outra cidade, de onde partiria um voo para o destino pela manhã.

Segundo Salomão, a melhor doutrina leciona que “só se deve reputar como dano moral a dor, o vexame, o sofrimento ou mesmo a humilhação que, fugindo à normalidade, interfira intensamente no comportamento psicológico do indivíduo, chegando a causar-lhe aflição, angústia e desequilíbrio em seu bem-estar”.

Todos estão sujeitos

No REsp 1.234.549, o relator, ministro Massami Uyeda (já aposentado), afirmou que as recentes orientações do STJ caminham no sentido de afastar indenizações por dano moral na hipótese em que há apenas aborrecimentos aos quais todos estão sujeitos.

Os recorrentes compraram imóvel em um condomínio residencial pelo valor de R$ 95 mil e, após a mudança, constataram diversos problemas como infiltrações, vazamentos e imperfeição do acabamento. Tais fatos geraram danos aos móveis da residência e problemas de saúde no filho dos proprietários em consequência do mofo.

Os recorrentes pleitearam a rescisão contratual, a devolução do valor pago e a condenação em danos morais no valor de R$ 20 mil.

Segundo Uyeda, os problemas ocorridos no apartamento, embora tenham causado frustração, por si sós não justificam indenização por danos morais. Para ele, mesmo que os defeitos de construção tenham sido constatados pelas instâncias de origem, “tais circunstâncias não tornaram o imóvel impróprio para o uso”.

“A vida em sociedade traduz, em certas ocasiões, dissabores que, embora lamentáveis, não podem justificar a reparação civil por dano moral”, afirmou o ministro.

Em outro julgamento da Quarta Turma, os ministros decidiram que a aquisição de produto impróprio para o consumo, quando não há ingestão, configura hipótese de mero dissabor vivenciado pelo consumidor, o que afasta qualquer pretensão indenizatória.

A discussão se deu no julgamento do AREsp 489.325, de relatoria do ministro Marco Buzzi, e tratou do caso de um consumidor que comprou lata de extrato de tomate com odor e consistência alterados. A lata de extrato possuía colônias de fungos. O consumidor não ingeriu o produto, mas pediu indenização por danos morais no valor de R$ 6 mil e a devolução do valor pago pela lata.

Buzzi afirmou que o vício constatado no produto autoriza a indenização por dano material, correspondente ao valor efetivamente pago. Entretanto, como não houve ingestão do produto, a condenação do fabricante em danos morais ficou afastada, “em razão da inexistência de abalo físico ou psicológico vivenciado pelo consumidor”.

Porta giratória

No REsp 1.444.573, os ministros da Terceira Turma afastaram o dano moral em ação de reparação proposta por policial militar que alegou constrangimento ao ficar travado na porta giratória de uma agência do Banco Santander porque estava armado.

O Tribunal de Justiça de São Paulo (TJSP) reconheceu o dano moral e fixou o valor da indenização em R$ 33.900. Contudo, o ministro João Otávio de Noronha explicou que é obrigação da instituição financeira promover a segurança de seus clientes, sendo exercício regular de direito a utilização de porta giratória com detector de metais.

Segundo o ministro, não caracteriza ato ilícito passível de indenização por dano moral o simples travamento da porta giratória na passagem de policial militar armado, ainda que fardado.

De acordo com Noronha, a responsabilidade do banco em indenizar surge somente quando praticada conduta “negligente, discriminatória ou abusiva que provoque situação desproporcional e vexatória”, o que não ficou constatado no caso.

Dano efetivo

Em sentido contrário aos dissabores apresentados anteriormente, no REsp 1.395.285, de relatoria da ministra Nancy Andrighi, foi analisada a situação de um consumidor que comprou carro zero quilômetro fabricado pela Ford Motor Company Brasil, o qual apresentou vários problemas.

Após apenas seis meses da aquisição do automóvel, ele apresentou mais de 15 defeitos em componentes distintos, alguns ligados à segurança – “ultrapassando em muito a expectativa nutrida pelo recorrido ao adquirir o bem”, afirmou a ministra Nancy Andrighi.

Tais defeitos obrigaram o consumidor a retornar por seis vezes à concessionária para que os reparos fossem efetuados. Ainda por cima, na última vez, um preposto da concessionária bateu o carro do cliente.

A ação proposta na primeira instância era de rescisão do negócio, cumulada com restituição dos valores pagos e indenização por danos morais. O TJSP fixou a indenização por danos morais em R$ 7.600. Inconformada, a Ford recorreu ao STJ alegando que os percalços sofridos pelo consumidor caracterizavam apenas “um inconveniente, um transtorno sem qualquer repercussão no mundo exterior”.

De acordo com a ministra, em regra, eventual defeito em veículo se enquadra no conceito de simples aborrecimento, incapaz de causar abalo psicológico, “sendo de se esperar certo grau de tolerância do consumidor na solução do problema pelo fornecedor”.

Entretanto, os ministros da Terceira Turma foram unânimes no entendimento de que a quantidade de defeitos apresentados pelo veículo extrapolou o razoável, inclusive porque parte deles estava ligada a problemas no cinto de segurança, nos discos e pastilhas de freio e na barra de direção – fatores que, segundo o colegiado, reduzem não apenas a utilidade do bem, mas a própria segurança do condutor e dos passageiros.

Por isso, a Turma considerou que esses defeitos “causaram ao recorrido frustração, constrangimento e angústia, superando a esfera do mero dissabor para invadir a seara do efetivo abalo moral”.

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21 Comentários

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O problema é a contrapartida: a indústria do mero dissabor.

O inadimplemento muitas vezes é fruto de má-fé (por exemplo: aquele que vende o que não tem) fazendo com que pessoas esperem para receber algo. Vc terá o trabalho de procurar a Justiça e por vezes gastar com advogado, a aí vem a morosidade processual, há casos em que se passam 7 anos na Justiça Especial.

Vira um ótimo negócio ser inadimplente; vejamos: vc recebe antecipadamente por um valor ao qual não entregará um bem, reinveste esse valor na empresa, construtora etc., faz uma espécie de caixa dois ... como a morosidade judiciária será longa o fruto do reinvestimento paga as despesas materiais corrigidas, principalmente se o próprio produto agora é defasado em relação ao mercado.

Como apelam para o mero dissabor e alegam não ter culpa da morosidade do Judiciário (verdade em parte, já que haverá um aumento demasiado nas demandas propositadamente), e como a justiça não lhe indeniza pelo seu próprio atraso no julgamento, vc receberá um valor que hoje não compraria um produto semelhante aquele na ápoca, mas sim, se muito, o mesmo, considerando a defasagem tecnológica, por exemplo.

.....
As companhias de telefonia, por exemplo, vendem 3G lentíssimo, causado pela superlotação de linhas nas poucas e defasadas estações de transmissão, além da prática de traffic shapping, e não pagam nada além da restituição do valor de compra do serviço ... valeu a pena ter se capitalizado.

.....
Para vc provar que alguém vendeu o que não tinha, que praticou traffic shaping, entre tantos outros casos, será impossível, pois não terás acesso a estes dados.

.....
Conclusão: é preciso haver outra "ferramenta" para punir irresponsáveis, especialmente os propositais. continuar lendo

Parabenizo pelo conteúdo.
A pergunta que sempre faço, qual o valor do seu dano moral, onde os MM buscam essas "tabelas" de valores, o que pensam na hora de proferir a sentença indenizatória ???
São questões que no âmbito jurídico as vezes se justificam as respostas, mas para o leigo (cliente) nem sempre.
Sendo assim, após uma sentença, somos questionados por eles, "Só isso Dr, o (a) juiz (a), não faz ideia do que passei..."
Entramos no dilema, Dano Moral X Indústrias das indenizações.
Pergunto; nossos magistrados, estão preparados para identificar, quem, o porque e para que? continuar lendo

O fato é que ... ainda que se considerarmos a indústria do dano moral, tais indenizações não são suficientes para coibir o abuso do poder econômico de empresas que se valem destes expedientes e assim, obter enriquecimento ílícito. Exemplos: telecomunicações e planos de saúde. As ações são recorrentes e as indenizações não cumprem seu papel punitivo. Logo, ainda é mais vantajoso economicamente falando, pagar do que acatar administrativamente o que vem sendo decido nos tribunais. continuar lendo

E é por isso que o Brasil continua funcionando perfeitamente, as empresas atendem muito bem seus clientes e a maioria está satisfeita com os produtos e serviços. Metem pau nos Estados Unidos, mas vai lá ver como o consumidor é tratado e como as empresas tratam os clientes. continuar lendo

Aqui é primeiro mundo, os EUA é quarto caminhando para quinto mundo. Aqui nos temos empresas preocupadas em vender-lhe artigos produzidos por trabalhadores chineses felizes e regiamente pagos, lá eles não controlam a qualidade do que produzem no país e o que vem de fora não é analisado cuidadosamente como aqui. Lá os danos morais são irrisórios, aqui contam-se nas casas dos milhões. Por essas razões, entre outras, que eu acho difícil para nos, brasileiros, adaptarmos com a cultura e o modo de vida americano o chamado "American way of life" continuar lendo

Praticamente um Pasárgada! Gostei das ironias. Esse é o nosso "home, sweet home"! continuar lendo

Assim você me assusta .... Depois percebi a ironia, mas enfim ... quando o dólar era atrativo, comprei muita coisa de fora. Em absolutamente nenhuma ocasião destas tive problema. Tudo sempre veio conforme pedido, valores corretos, meu nome sempre escrito correto (esta última parte, é a mais difícil de acontecer aqui no Brasil). Somente quando a mercadoria adentrou no país, é que os problemas começavam: pacotes perdidos, RFB determinando o valor do bem que comprei (sempre absurdamente acima do que eu havia pago), recursos administrativos e inclusive uma ação judicial. continuar lendo

Eu acho tudo muito bonito, bem argumentado e fundamentado, mas estão esquecendo o mais importante, a satisfação do cliente quando investe um certo valor (muito ou pouco) para adquirir um bem ou contratar um serviço.
Citando o caso do "Tablet" que foi comprado para presentear o filho em uma data comemorativa. Não há necessidade de comprovar a angustia, insatisfação e/ou a frustração do filho, pois a data da compra (comprovada) é critério para deduzir o interesse desta aquisição. Ainda que não fosse para presentear, e sim para anseio próprio. Não pode as empresas deixarem de cumprir suas obrigações como fornecedores e prestadores de serviços, de cumprir com as demandas e a "Justiça" corroborá isentando as multi-milionárias que continuam praticando, engando e causando prejuízos ao seus consumidores. Quem garante que aquele pai tinha dinheiro sobrando para comprar outra mercadoria para presentear seu filho? E não tem que se sujeitar a isso, pois se comprou com prazo estipulado, que cumpra-se com o prometido e legalmente contratado, sob pena de indenizar, assim como rege o próprio CDC.
Acontece que tem muita sentença favorecendo as grandes empresas, fomentando ainda mais as demandas judiciais.
Estão andando na contra-mão da moralização da prática da boa-fé, que tem por finalidade garantir a proteção do consumidor enquanto parte reconhecidamente vulnerável na relação de consumo. continuar lendo

Fácil acabar com a industria da indenização. Só acabar com a industria da violação dos direitos fundamentais. Simples assim. continuar lendo